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Como começamos a beber leite?

Há menos de 10.000 anos uma mutação recuperou a capacidade de digerir a lactose

Um trabalhador ordenha uma vaca na França.
Um trabalhador ordenha uma vaca na França. JEAN-FRANCOIS MONIER (AFP)

Há 10.000 anos nossa relação com o leite era semelhante à de outros mamíferos. Esse rico alimento devia alimentar a cria durante os primeiros anos de vida, até que fosse mais ou menos independente da mãe. Depois, as crianças abandonavam o peito para comer como o restante da tribo e deixá-lo livre para novos bebês. Para garantir que isso acontecesse e os maiores não ficassem enganchados nas mamas, a evolução favoreceu a eliminação do gene que produz a lactase, a enzima intestinal que permite digerir a lactose, o principal nutriente do leite. A partir desse momento, beber leite significava ficar com dor de estômago ou até mesmo uma perigosa diarreia.

Mas, no final da última era do gelo, os humanos tinham decidido comer a fruta da árvore proibida, aventurar-se fora do paraíso e começar a jogar com as regras da mãe natureza. Pouco a pouco foram selecionando os animais mais dóceis para comer sua carne, utilizar sua pele e, depois de um tempo, aproveitar seu leite. Embora o organismo daquelas pessoas ainda não pudesse digerir aquele alimento para bebês, elas se deram conta de que quando era fermentado para se tornar iogurte ou queijo mantinha as propriedades nutritivas sem causar problemas digestivos.

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Nessas populações de criadores de gado apareceu uma mutação que parecia adequar-se completamente à natureza. Os indivíduos daquelas populações recuperaram a capacidade de digerir o leite durante toda a vida e, com isso, conseguiram acesso a um alimento nutritivo que lhes poderia salvar a pele quando outros recursos fossem escassos. Hoje, cerca de um terço da população mundial é tolerante à lactose. A grande maioria é europeia ou tem ancestrais nesse continente, embora também haja algumas regiões, na África e Oriente Médio, nas quais ocorreu, de forma independente, a mutação que torna possível digerir o leite.

A princípio se pensou que aquela transformação, que pode ter incrementado em até 19% o número de descendentes dos possuidores da variante genética, se expandira a toda velocidade pela Europa. Aqueles mutantes tinham deslocado as tribos de caçadores e coletores que ocupavam o continente, transformando-se nos ancestrais dos atuais europeus. No entanto, apesar da grande vantagem evolutiva de poder beber leite, a mudança está bem longe de ser universal, e demorou para aparecer. No norte do continente, a mutação teve muito mais êxito que no sul, e há regiões da Europa onde, apesar de haver animais domesticados, há tão somente 3.800 anos a tolerância à lactose ainda não havia ganhado impulso.

Mark Thomas, investigador da University College London e um dos principais especialistas do mundo na matéria, reconhece que por ora só existem algumas hipóteses e muitas incógnitas a serem resolvidas antes de se entender por que tantos adultos mantêm a tolerância ao leite. Uma das possibilidades que foi colocada à prova é a hipótese da assimilação do cálcio. Para que nosso corpo possa aproveitar esse importante mineral é necessária a vitamina D, e a principal fonte de vitamina D é o sol. Isso explicaria por que nos países do norte do continente, onde a radiação ultravioleta é menor, teria existido uma maior pressão seletiva em favor dos indivíduos que pudessem consumir leite e, com ele, o cálcio e a vitamina D que contém.

Essa possibilidade foi comprovada com indivíduos da jazida arqueológica de Portalón, em Atapuerca (Espanha). Ali foi recolhido DNA de oito indivíduos de 3.800 anos atrás que se dedicavam ao pastoreio e, supõe-se, incluiriam derivados lácteos em sua dieta. Nenhum deles tinha a variante genética que permite beber leite. Em princípio, como recorda Thomas, o resultado não é surpreendente. Na Espanha e em outras regiões onde a tolerância à lactose apareceu de maneira independente, como a África Ocidental, a radiação solar é suficiente para que os humanos produzam a vitamina D de que necessitam. Nesses casos, a pressão seletiva deve ter sido diferente.

“Quando estudamos aqueles indivíduos de uma época em que podiam estar havia vários milhares de anos trabalhando com animais domesticados e utilizando laticínios, isso poderia levar-nos a pensar que já seriam tolerantes à lactose, mas não eram”, afirma José Miguel Carretero, pesquisador da Universidade de Burgos e membro da equipe de Atapuerca. No entanto, a tolerância à lactose entre os espanhóis é de 40%, e foi comprovado que se desenvolveu no próprio território e não se deve à chegada de populações do norte. Nesse caso, Carretero menciona que “a fome poderia ser o fator que favoreceu uma seleção natural mais rápida e mais forte” pelo fato de a tolerância estar em tanta gente em tão pouco tempo.

Para averiguar qual foi o momento em que se produziu a mudança e onde, Thomas afirma que será necessário fazer mais análises de DNA antigo por todo o continente para se ter uma imagem ampla das mudanças no espaço e no tempo. A informação poderá ser usada para reconstruir a história do neolítico na Europa e explicar como acabou o domínio das tribos nômades que se dedicavam a caçar e coletar o que a natureza punha ao seu alcance para dar lugar a povos que deixaram de perambular para trabalhar a terra, pastorear animais, sofrer com a civilização e desfrutá-la.

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