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Uma viagem ao centro da mente

'Divertida Mente' mostra que as emoções são a bússola do nosso comportamento

Da esquerda para a direita os personagens que representam as emoções: Nojinho, Alegria, Raiva (o vermelho), Tristeza e Medo.
Da esquerda para a direita os personagens que representam as emoções: Nojinho, Alegria, Raiva (o vermelho), Tristeza e Medo.

algo extraordinário no último filme da Pixar, Divertida Mente, algo que atraiu milhões de espectadores às salas de cinema de todo o mundo e que faz com que muitas crianças saiam delas com a impressão de terem presenciado uma narrativa nova e reveladora. Mas não é fácil saber exatamente o que é. Superficialmente, se trata de uma história já vista, ou da soma de várias já vistas, entre elas Viagem Fantástica (1966), de Isaac Asimov, onde uma tripulação miniaturizada entrava na corrente sanguínea de um paciente e tinha que fugir de seus glóbulos brancos, e, claro, Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carroll, que também é uma viagem, de um modo mais alegórico, pela mente de uma menina.

O que Divertida Mente tem de extraordinário, então? É comum apresentar as origens da física moderna – Copérnico, Kepler, Galileu e a fogueira que queimou Giordano Bruno — como um conflito contra a superstição e o dogma religioso, mas a neurociência atual está travando uma batalha épica contra inércias muito mais poderosas e resistências que não estão escritas em nenhum texto sagrado, mas incorporadas, em série, em cada um de nós, e que, portanto, são tão velhas como a própria espécie.

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Nossa consciência, esse fio narrativo único, linear e movido pela razão e pelo livre arbítrio que todos experimentamos a cada minuto de nossas vidas, é um engano ainda maior do que todos os delírios dos xamãs. E essa é a religião que a ciência precisa derrubar agora.

Um século de neurologia demonstrou, além de todas as dúvidas pertinentes, que a mente humana é o resultado da atividade frenética de centenas ou milhares de processadores especializados e localizados em regiões concretas do cérebro. Por isso, as lesões locais, produzidas por um acidente, um derrame ou um tumor cerebral têm efeitos tão assombrosos: podem eliminar não só a zona esquerda do campo visual, mas também a região onde estão armazenadas as memórias, ou destruir a empatia, a aritmética e a capacidade para formar frases sintaticamente corretas, sem afetar nada mais.

Talvez, a evidência mais chocante e contrária à intuição seja o resultado da separação cirúrgica dos dois hemisférios cerebrais, que era realizada frequentemente para aliviar os casos mais graves de epilepsia. Os pacientes parecem totalmente normais depois dessa operação, mas basta submetê-los a simples provas de psicologia experimental — durante as quais uma divisória separa seu campo visual direito do esquerdo, por exemplo — para perceber que, na realidade, se transformaram em duas pessoas distintas!

O diretor se meteu em um imbróglio considerável e em alguns casos as suas metáforas não tem sentido

Como a área correspondente à linguagem está no hemisfério esquerdo, uma dessas pessoas sabe falar e a outra não. Pior ainda: o fio condutor da consciência, o narrador das nossas vidas, também está situado no hemisfério esquerdo. A outra pessoa (a direita) o perde totalmente. Os detalhes são fascinantes e podem ser lidos em um livro lançado em 2014 pelo grande neurologista Michael Gazzaniga, Tales from Both Sides of the Brain, que recomendo, fortemente, para todos os interessados nos paradoxos da mente humana.

Entre todos esses diabinhos que constituem nossa mente, Pete Docter, escritor e diretor de Divertida Mente, preferiu concentrar-se nas emoções, e o fez de uma maneira muito efetiva: caracterizando cada uma delas como personagens antropomorfos. Dentro da mente de Riley, a protagonista, convivem Alegria, Tristeza, Medo, Raiva e Nojinho, que discutem e brigam, observam o mundo externo e reagem a ele, guiando, de uma maneira ou de outra, o comportamento da menina sem que ela saiba de nada disso, obviamente.

Na sociedade tradicional, e no pensamento convencional, as emoções costumam ter uma imagem muito ruim. O que está mal visto não é mostrar as emoções, mas o mero fato de senti-las, deixar-se levar pelos instintos animais e, assim, carecer da vontade necessária para reprimí-los, não ser mais do que um boneco de pano, a terceira divisão da liga biológica e filosófica. Mas isso não é mais do que um erro fatal.

Deixe que sua filha veja o filme: ela crescerá com menos preconceitos contra a neurociência do que você

Sem dor não há forma de se proteger de machucados, sem alegria não existem motivos para se levantar da cama, e a incapacidade de sentir medo, raiva ou nojo nos transforma em zumbis, robôs de carne e osso que parecem humanos mas que não são mais do que suas meras sombras projetadas na parede, máquinas programadas para persuadir o incauto de sua natureza racional.

As emoções são a bússola de nosso comportamento. Os seus estudos, as ideologias que segue e o trabalho que definirá a sua biografia são uma consequência direta das suas emoções, sobre as quais você não tem nenhum controle. Talvez por sorte. Isso é o que o filme mostra de uma maneira eloquente. Esse é o aspecto extraordinário dessa história aparentemente convencional.

Docter, naturalmente, buscou a assessoria de psicólogos especializados no tema para elaborar seu roteiro, embora tenha levado em conta apenas o considerou oportuno. E fez bem, porque o cérebro humano é uma máquina excessivamente complexa e misteriosa para ser representada em uma tela de cinema, e continuará sendo enquanto não podamos compreendê-la mais a fundo. Mesmo assim, é óbvio que o diretor se meteu em um imbróglio considerável, e, em alguns casos, suas metáforas são confusas e difíceis de entender.

No entanto, consegue atingir seu principal objetivo, que é explicar o que acontece com uma menina nessa difícil fase da pré-adolescência. As coisas deixam de ser alegres ou tristes, aterrorizantes ou irritantes, e começam a assumir uma natureza combinada e complexa, matizada e relativa, paralela ao amadurecimento da protagonista. Assim como na própria vida.

Você não tem por que ver o filme. Mas, pelo menos, deixe a sua filha assistir: ela crescerá com menos preconceitos do que você sobre as revelações da neurociência.

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