Paraisópolis: um tour pela arte e o engenho da ‘Cidade do Paraíso’, a favela cultural
No passeio a pé Paraisópolis, em São Paulo, cultura e mobilização se misturam pelas ruas
Paraisópolis, a segunda maior favela de São Paulo que há um mês batiza uma novela na TV Globo, espera capitalizar os holofotes para sair do gueto e fazer bombar seu tour cultural a pé, que existe desde setembro de 2013, mas que atrai apenas cerca de 20 pessoas por semana, quando muito. “Se a minha casa fosse em Moema ou no Brooklin, eu estaria rico já com tanta visita. Mas aqui não vem muita gente porque é na favela. As pessoas têm medo”, diz Estevão Conceição, dono e criador da Casa de Pedra, conhecido como o Gaudí Brasileiro.
A casa de Estevão é o primeiro ponto do passeio guiado, que tem como ponto de partida a sede da União dos Moradores e do Comércio de Paraisópolis e custa R$ 150 por cabeça (o valor pode ser negociado, dependendo do número de pessoas). O tour acontece pelas manhãs, quando os artistas estão disponíveis para receber os visitantes, em sua maioria estrangeiros, e dura em média duas horas, dependendo do ritmo da caminhada (vá com um bom par de tênis) e da disposição dos turistas para papear – os anfitriões não se negam a uma boa prosa. Além da Casa de Pedra, o visitante conhece a casa de garrafas PET, a oficina do Berbela e o Ballet Paraisópolis, passando ainda pela sede da rádio e do jornal comunitários.
Mundo fantástico
Casa de Pedra ou – talvez o apelido mais apropriado – Casa Enfeitada. Assim é conhecida a residência de Estevão Conceição, o Gaudí paulista, que na verdade é um simpático baiano original do município de Santo Estevão. É ele quem recebe o visitante logo na entrada do imóvel de cerca de 75 metros quadrados por 10 metros de altura. Mais que um palacete de formas sinuosas e irregulares, com passagens que remetem a um labirinto, o local é uma obra de arte viva: ganha novos adereços a cada semana e mantém sua rotina familiar mesmo em meio ao tour. Estevão vive nesta casa com a esposa Edilene e os dois filhos do casal, já acostumados com os olhares atentos aos detalhes da sala, cozinha e dos quartos. “As visitas não incomodam. O que me incomoda é que dá muito trabalho pra limpar”, admite Edilene, que mantém o local impecavelmente limpo. “Mas volta quando tiver sol, que isso aqui vira um arco-íris lindo de tudo!”, convida a dona-de-casa.
Assim como nas obras do arquiteto catalão, a primeira impressão que se tem é a de estar entrando em um mundo surreal, algo como um sonho colorido e pitoresco. Pensada originalmente para ser um roseiral, a casa cresceu para cima (por falta de espaço), e foi sendo moldada com barras contorcidas de ferro, arame, areia e cimento, que servem de base para as milhares de bugigangas garimpada em bazares, de itens belos a bizarros: há desde canecas, xícaras e azulejos coloridos a vários modelos diferentes de telefones celulares antigos, máquinas de escrever, bicicletas infantis, manequins de loja, imagens de santos para todos os gostos, entre outros. Na parte superior, um jardim suspenso com mais de 50 espécies de plantas dá vista para o restante da favela. “Experimenta essa fruta. Pode se sentar que não tem perigo não. Agora sente que docinha que ela é”, disse Estevão, oferecendo uma pitaia.
O dinheiro das visitas não é suficiente para manter a família, por isso, ele trabalha em um prédio na zona oeste de São Paulo, e também faz bicos como jardineiro em casas da região do Morumbi. Com o tour, passou a produzir vasos para vender (um item sai por 50 reais). A maior parte da renda dos passeios vai para a União de Moradores, que usa a verba para manter os projetos comunitários no bairro.
Volta à realidade
O visitante desperta desse sonho fantástico para a realidade da comunidade: o passeio continua pelas caóticas ruas e estreitas vielas do centro da favela, recentemente decoradas com a frase que dá nome à novela. À primeira vista, parece uma ação da emissora, mas não é. Aproveitando o gancho televisivo, grafiteiros convidados pelos moradores fizeram ilustrações em 30 pontos da região acompanhadas da hashtag #urbanizaçãojá, uma forma de pressionar a Prefeitura de São Paulo a retomar as obras de urbanização na área.
A poucas quadras da casa de Estevão está a sede do Ballet Paraisópolis, um projeto social que atende gratuitamente a cerca de 300 meninas e 10 meninos, que ensaiam todos os dias no local. Criado em 2012, ele atende a estudantes de até 13 anos, mas sua fila de espera é de mais de 800 crianças e adolescentes. Durante a visita, é feita uma rápida apresentação. O local foi incluído como parte do roteiro para dar visibilidade ao projeto, que vive graças à captação de recursos via Lei Rouanet e de patrocínios do setor privado. O sonho da idealizadora e diretora Monica Tarragó é transformá-lo um dia em uma companhia de dança. Até lá, os bailarinos do grupo se apresentam em eventos pela cidade com a esperança de serem notados por um caça-talentos que os ajude a continuar na dança quando já não tiverem mais idade para serem atendidos.
O passeio segue então para a casa de garrafas PET, do alagoano Antenor Clodoaldo. Construída com alvenaria, a casa – um premiado projeto de arquitetura sustentável – leva 27.034 garrafas plásticas e 10.800 tampinhas, além de milhares de detalhes feitos com anel de latas de alumínio. E é Antenor quem guia o visitante pela sua residência, onde vive sozinho com vários gatos (eram 12 bichos, na ocasião da visita). Graças à companhia dos animais, o imóvel tem um cheiro bem forte, difícil de não ser notado. O proprietário tem tanto apreço pelos felinos que os bichanos têm espaços de lazer também feitos de garrafa. “Eu queria doar os gatos, mas só doo para quem eu seu que cuida”, se explica. Com tempo livre após uma aposentadoria precoce (fruto de um problema de saúde), Antenor decidiu reformar sua casa e “se cercar de verde”.
Por fim, o roteiro termina na oficina do mecânico Antônio Edinaldo, o Berbela, outro sorridente nordestino que com as sucatas que sobram das motos, carros e eletrodomésticos que conserta cria esculturas ricas em detalhes. Suas peças refletem sua grande paixão, a natureza, de onde tira a inspiração para criar tartarugas, jacarés moldados com sobras de correntes de bicicletas. Mas há também robôs, instrumentos musicais, máquinas fotográficas e outros objetos criados a partir dos materiais recicláveis. As mais de 3.000 esculturas do pernambucano estão espalhadas pela oficina, de onde tira seu ganha-pão. Embora comercialize algumas peças, ele admite que se apega pela maioria delas e, por isso, quase não se desfaz do que produz. “Eu faço por amor. Esses são meus outros filhos”, diz o pai de quatro meninos, segurando um ratinho de aço.
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