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PEDRA DE TOQUE
Tribuna
São da responsabilidade do editor e transmitem a visão do diário sobre assuntos atuais – tanto nacionais como internacionais

País imprevisível

Nunca a imagem de Peru foi tão positiva no resto do mundo. Sua estabilidade institucional e sua abertura econômica o tornaram especialmente atraente para o investimento estrangeiro

Mario Vargas Llosa
FERNANDO VICENTE

Há algumas semanas estive nos Estados Unidos em uma conferência econômica dedicada à América Latina, organizada pelo Citibank. Ao longo de dois dias, por volta de 300 empresários, banqueiros e analistas estudaram o estado da região. Acho que não exagero ao dizer que a impressão geral do público sobre a situação do Peru não podia ser mais positiva. Sem exceções, reconheceram que, desde a queda da ditadura de Fujimori, em 2000, a democracia funcionou e que, durante os governos de Agustín Paniagua, Alan García, Alejandro Toledo e o atual de Ollanta Humala, as instituições trabalharam sem maiores impedimentos, a economia cresceu acima da média latino-americana, a redução da extrema pobreza foi notável, assim como o crescimento da classe média. E que, dada sua estabilidade institucional e sua abertura econômica, o Peru é um dos países mais atraentes para o investimento estrangeiro. Essa não foi a única ocasião em que ouvi algo parecido. A verdade é que nunca, em minha memória, a imagem de meu país foi tão positiva no resto do mundo.

E, entretanto, quem vive no Peru, onde acabo de passar um tempo, pode ter uma impressão muito diferente: a de um país exasperado, à beira de uma catástrofe pela ferocidade fratricida das lutas políticas, e que as greves dos mineiros, em Cajamarca e principalmente em Arequipa, a corrupção encarniçada nas regiões por culpa das máfias locais e do tráfico de drogas e a agitação social estão fazendo retroceder e aproximar-se novamente do abismo, ou seja, a barbárie do subdesenvolvimento e, até mesmo, da falência constitucional.

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Como explicar semelhante incongruência entre a imagem externa e a imagem interna do país? Pela falta de perspectiva, a concentração fanática no galho que nubla a visão da floresta. É, provavelmente, o maior defeito da imprensa no Peru – escrita, do rádio e da televisão –, controlada em 80% por somente um grupo econômico, que, como está em sua imensa maioria na oposição ao Governo, divulga uma imagem apocalíptica de uma problemática social e política que, no final das contas, é bem menos grave do que a maioria dos países do resto do continente. E, por outro lado, esquece e tenta até mesmo destruir a maior conquista do Peru atual em toda a sua história: um amplo consenso nacional em favor da democracia política e da economia de mercado. Sem esse acordo nacional, do qual, com exceção de grupelhos insignificantes, fazem parte tanto a direita como a esquerda, o Peru jamais teria progredido tanto como nos últimos 15 anos.

No final do mês de março a situação se agravou de tal maneira que qualquer catástrofe poderia ter acontecido. O Parlamento censurou a primeira-ministra Ana Jara em uma sessão que acompanhei parcialmente pela televisão, abismado pelos níveis de ignorância e demagogia que alguns de nossos legisladores podem atingir. O presidente Humala nomeou em 2 de abril um novo gabinete presidido por Pedro Cateriano, que foi, por dois anos e oito meses, seu ministro da Defesa. Quase todo mundo viu nessa nomeação uma provocação do mandatário, com a finalidade de produzir uma nova censura, o que lhe permitiria fechar constitucionalmente o Congresso e convocar novas eleições parlamentares. Cateriano foi, durante toda sua gestão ministerial, um crítico implacável do fujimorismo e do aprismo, as duas forças mais hostis ao Governo e cujos dirigentes – Keiko Fujimori e Alan García – são candidatos certos nas eleições presidenciais de 2016.

Uma insólita paz  parece ter se instalado em um país que há muito pouco tempo parecia à beira de um golpe de Estado

Mas nada aconteceu conforme o previsto. Ao invés de ser o provocador truculento que se esperava, Pedro Cateriano mostrou desde o primeiro momento uma vontade surpreendente de coexistência e diálogo. E explicou: “Precisarei mudar. Como presidente do Conselho de Ministros, minhas opiniões políticas pessoais deverão ser, em muitos casos, substituídas pelo critério do Governo”. Falou com todos os líderes políticos, sobretudo os da oposição, explicou-lhes seus planos, escutou suas críticas e até foi fotografado cumprimentando seus arquirrivais Keiko Fujimori e Alan García. O resultado é que, depois de quase dez horas de debate, o novo gabinete presidido por Cateriano foi aprovado por 73 congressistas, com a abstenção de 39 e 10 contrários. E, o mais notável, uma insólita paz e um clima de convivência parecem ter se instalado subitamente em um país que há muito pouco tempo parecia à beira de um golpe de Estado ou uma guerra civil.

Em boa hora, e sem demora, espero que essa trégua civilizada dure, o Governo possa governar em paz seu último ano, que a campanha eleitoral e as eleições sejam livres e genuínas e não destruam, mas consolidem esse processo que há 15 anos traz um progresso sem precedentes em nossa história.

É preciso felicitar o presidente Humala por sua aposta audaz em escolher Pedro Cateriano como seu novo primeiro-ministro, apesar de sua fama de brigão e impetuoso. Soube ver nele, por baixo das aparências truculentas, um político fora de série no cenário peruano. Eu o conheço bem, há muitos anos. Mas é completamente falso, como foi dito, que eu tenha intervindo de alguma forma para suas nomeações. Jamais pedi – nem pedirei – favor algum ao presidente Humala, a quem, apesar do apoio que lhe dei, também critiquei quando acreditei ser justo. (Por exemplo, por não ter recebido nem apoiado publicamente a oposição democrática venezuelana que resiste heroicamente às garras ditatoriais do inefável e desprezível Maduro). E também não os pedirei, claro está, ao novo primeiro-ministro, exatamente porque é um velho amigo.

É preciso felicitar Humala por escolher Pedro Cateriano como seu novo primeiro-ministro

A primeira vez que o vi, durante a campanha eleitoral na qual fui candidato, Cateriano discursava para o vazio na praça de Tacna, onde havíamos convocado um comício visto por meia dúzia de gatos pingados. Falava com uma convicção insólita e sem importar-se minimamente com o ridículo. Expressava ideias em vez de lugares-comuns, e era um homem culto e decente, honrado até o tutano de seus ossos. Não somente incapaz de realizar alguns dos crimes e mancomunações sem-vergonhas tão frequentes entre as pessoas do poder, como, também, de tolerá-los ao seu redor. Não tenho a menor dúvida de que, com ele à frente do Conselho de Ministros, a luta contra a corrupção – uma das pragas que assolam toda a América Latina – ganhará novo ânimo.

Ao longo de quase toda a minha vida fui muito pessimista sobre o futuro do Peru. Contribuiu para isso, talvez, ter passado minha infância e minha juventude em um país aviltado por uma ditadura militar, a de Odría, que prostituiu todas as instituições – entre elas a universidade onde estudei – e, depois, ter visto como eram frustradas entre nós todas as tentativas democráticas, destruídas por partidos políticos ineptos que preferiam destroçar-se entre si a fazer funcionar a democracia, mesmo que isso causasse várias vezes o sinistro retorno da ditadura. Desde o ano 2000, com a queda de Fujimori e Montesinos – ladrões e assassinos que bateram todos os recordes de criminalidade estabelecidos pelos ditadores peruanos –, de repente começaram a acontecer coisas em meu país que me encheram de esperança. Há 15 anos, com alguns tropeços e interrupções, ela se mantém. Hoje, esvoaça de novo, ainda viva, mas como uma lamparina ao vento, e sempre com o medo de que surja um golpe de vento que a apague.

Direitos mundiais de imprensa em todas as línguas reservados a Edições EL PAÍS, SL, 2015.
© Mario Vargas Llosa, 2015

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