Projeto de terceirização é ‘remendo’ que não evita conflito com lei vigente
Câmara retoma nesta quarta votação de projeto; estatais são excluídas de novas regras
A Câmara dos Deputados adiou para esta quarta-feira a continuação da votação da controversa lei (4.330) que permite que as empresas possam terceirizar qualquer tipo de atividade. Divergências, inclusive entre lideranças a favor do projeto, expuseram mais uma vez a dificuldade de discutir a toque de caixa o tema sem um amplo debate sobre a base da legislação trabalhista em vigor, de 1943, e as distorções e ilegalidades já aplicadas no mercado de trabalho. Na opinião de especialistas, o texto tal como está é apenas um remendo.
"É o remendo do remendo. Uma invenção fora de hora, que desorganiza todo um processo para discutir uma reforma trabalhista. A própria CLT (Consolidação das Leis Trabalhistas) precisaria ser repensada. Tanto a parte individual como a coletiva", explica o pesquisador das relações de trabalho e professor titular da PUC-SP, Arnaldo Mazzei Nogueira.
Ainda segundo Nogueira, o Governo precisa de uma reforma que equilibre os direitos dos trabalhadores e que seja negociável em cada tipo de emprego. "O que temos é um projeto que, ao invés de melhorar o padrão de trabalho, está nivelando o padrão para baixo. Colocando em risco também os trabalhos formais", completa.
Rediscutir a CLT causa pavor no governista PT, nos esquerdistas PSOL e PCdoB e nas centrais sindicais tradicionais que apoiam a Presidenta, que temem que a mudança da legislação só prejudique direitos já garantidos aos assalariados. Mas a ideia de que é preciso mudar as regras em vigor, inclusive a CLT, encontram eco no Governo. Nesta semana, o recém-empossado ministro de Assuntos Estratégicos, Roberto Mangabeira, defendeu uma reforma trabalhista e destacou que, assim como Getúlio Vargas criou a CLT, já é hora de que o país promova "outra iniciativa de igual dimensão histórica". "Não custa um centavo. É uma ação normativa. É criar um conjunto de regras", explicou Mangabeira em entrevista ao jornal Valor Econômico. Segundo ele, há "um novo paradigma produtivo que está emergindo e continuará a emergir em todo o mundo" e o Brasil não conseguirá evitá-lo.
Conflito jurídico
O texto-base aprovado na Câmara na semana passada afirma que o empregado terceirizado não pode ter vínculo empregatício com a empresa contratante. Segundo a CLT, que não está sendo alterada, o vínculo empregatício pode ser comprovado por três quesitos: habitualidade (comparecer ao menos três vezes ao local de trabalho), subordinação (cumprir ordens e horários) e pessoalidade. Desta forma, mesmo com a ampliação das possibilidades de terceirização, o funcionário terceirizado não poderia receber ordens diretas e nem orientações que não fossem das empresas terceirizadas.
Centrais sindicais se mobilizam em todo país contra o projeto
Nesta quarta-feira, as principais centrais sindicais do país (CUT, CTB, NCST, Intersindical e Conlutas) e movimentos populares do campo e da cidade, entre eles MST, MTST, CMP e UNE, realizam atos em todo o país contra o projeto.
De acordo com a CUT, cerca de 15 cidades devem participar. Em São Paulo, os trabalhadores realizarão paralisações e assembleias na porta dos locais de trabalho. O primeiro ato que vai reunir diversas categorias, como bancários, metalúrgicos, químicos, petroleiros e setores de serviços e comércio será às 15h, em frente a FIESP.
Em Brasília, a concentração será em frente à CUT. Depois, os militantes seguirão em caminhada até a rodoviária. No Rio de Janeiro, os trabalhadores se reunirão na Cinelândia na parte da tarde. A CUT não possui uma estimativa de quantos trabalhadores irão aderir aos atos.
"Ao formalizar a terceirização dessa forma não vamos resolver os problemas trabalhistas e sim acabar tendo uma enxurrada de ações, uma vez que sabemos que, na maioria das vezes, se contrata um serviço terceirizado apenas para reduzir a tributação e os salários. É a precarização do trabalho. Facilmente se comprovará o vínculo de emprego direto", explica o advogado trabalhista Luis Carlos Moro. Para ele, mais do que a CLT, o que precisa ser rediscutido é a carga tributária sobre a contratação direta e o rendimento do trabalhador.
O advogado defende também que é preciso estabelecer limites para a terceirização. "Não podemos permitir que 100% da empresa seja terceirizada. Uma construtora não precisa ser especializada em vidros. Para isso, pode contratar uma terceirizada especializada, mas terceirizar um pedreiro já não deveria ser permitido", explica. Dessa forma, segundo Moro, estamos legalizando "algo ilícito e deixando de aproveitar uma especialização".
As empresas e forças sindicais favoráveis à regulamentação do setor dizem que aprovação da lei vai preencher um vácuo e garantirá os direitos dos mais de 12 milhões de terceirizados que estão à margem da legislação. A Confederação Nacional da Indústria (CNI) sustenta que a aprovação do projeto vai garantir segurança jurídica, melhorar o ambiente de trabalho, e por consequência, a geração de empregos qualificados.
Empresas públicas
Na discussão desta terça-feira na Câmara um dos pontos discutidos e aprovados foi a exclusão de empresas públicas e mistas (como a Petrobras) da possibilidade de ampliar as atividades passíveis de terceirização. Ou seja, a nova lei, se aprovada no Senado e sancionada, não valeria para o setor público.
A discussão de pontos específicos do texto, os chamados destaques, continua nesta quarta. De um lado, os sindicatos pressionam para que seja instituída a chamada responsabilidade solidária. O que significa uma maneira de permitir que o trabalhador possa escolher qual empregador irá acionar na Justiça --se a contratante ou a prestadora de serviço-- caso se sinta lesado. O texto-base aprovado prevê que, caso o trabalhador seja prejudicado, a responsabilidade é da prestadora de serviço. Só depois de esgotado processo, a contratante poderia ser acionada.
Já a equipe econômica do Governo tenta negociar com o relator do projeto, Arthur Maia (SDD-BA), a forma de recolhimento do INSS das empresas terceirizadas. Após reunião com Michel Temer nesta terça-feira, o relator afirmou que ainda não há consenso em relação a esse recolhimento.
Mulher de Cunha foi à Justiça contra Globo por direitos da CLT
A jornalista Claudia Cordeiro, mulher do presidente da Câmara, Eduardo Cunha, principal articulador do projeto que regulamenta a terceirização, já travou uma disputa judicial contra a rede Globo por trabalhar como prestadora de serviços por anos quando exercia, conforme concedeu a Justiça, função de funcionária da empresa.
De acordo com a Federação Nacional de Jornalistas (Fenaj), num período de mais de 10 anos, Claudia trabalhou para a emissora sem assinar sua carteira de trabalho, como prestadora de serviço. A TV Globo condicionou a contratação à constituição de Pessoa Jurídica e ela criou a C3 Produções Artísticas e Jornalísticas Ltda.
A profissional entrou com ação na Justiça do Trabalho após ser informada, em julho de 2000, que seu contrato não seria renovado, e depois de, segundo ela, ter contraído doença ocupacional, ainda segundo o Fenaj. A jornalista procurou a Justiça Trabalhista para que o vínculo empregatício fosse reconhecido.
O Tribunal Regional do Trabalho do Rio de Janeiro (TRT-RJ) acatou o pedido de Claudia, reconhecendo vínculo de trabalho entre maio de 1989 a março de 2001 – com o salário de R$10.250,00. A decisão também foi mantida pela Sexta Turma do Tribunal Superior do Trabalho (TST), apesar de recurso da Globo.
De acordo com a decisão assinada pelo relator do caso, Horácio Senna Pires, verificou-se “que se tratava de típica fraude ao contrato de trabalho, consubstanciada na imposição feita pelo empregador para que o empregado constituísse pessoa jurídica com o objetivo de burlar a relação de emprego havida entre as partes”.
Mesmo que o projeto apoiado por Cunha seja aprovado no Senado e sancionado, casos como o de sua mulher ainda podem acontecer. De acordo com texto, não se pode configurar vínculo empregatício entre a empresa contratante e os trabalhadores ou sócios das empresas prestadoras de serviços, qualquer que seja o seu ramo. Porém, especialistas acreditam que é muito difícil que certos funcionários não recebam por exemplo, ordem direta da empresa que contrata o serviço.
Atualmente, baseado nos artigos 2.o e 3o da CLT, a Justiça do Trabalho afirma que existe o vínculo empregatício se ficar comprovado que o trabalhador comparece ao menos três vezes por semana ao local de trabalho, cumpre ordens e horários e se há pessoalidade.
"Na maioria dos casos da terceirização o vínculo ocorre, pois quase sempre estão presentes esses fatores. Há brechas para uma fraude. Mesmo com a regulamentação, haverá uma enxurrada de ações trabalhistas", afirma a advogada trabalhista Fabíola Marques.
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