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PEDRA DE TOQUE
Tribuna
São da responsabilidade do editor e transmitem a visão do diário sobre assuntos atuais – tanto nacionais como internacionais

Cusco no tempo

Na região que se gaba de falar o quéchua mais clássico e puro do Peru se escuta também um espanhol cuidadosamente pronunciado, modelo de elegância, desenvoltura e discrição

Mario Vargas Llosa
FERNANDO VICENTE

Como Jerusalém, Roma, Cairo ou México, em Cusco o passado é parte essencial do presente e frequentemente o substitui pela irresistível presença da história. Não há espetáculo mais impressionante que ver o amanhecer da praça de Armas da antiga cidade, quando despontam na imprecisa luminosidade da alvorada os maciços templos de cor ocre escura e as varandas coloniais, os tetos de telhas, a erupção de campanários e torres e, em todo o redor, o horizonte quebrado dos Andes que circunda como uma muralha medieval aquele que foi o orgulhoso “umbigo do mundo” no tempo dos incas.

Há algo religioso e sagrado no ambiente e a gente entende, como contam os primeiros cronistas que visitaram a cidade imperial e deixaram testemunho escrito de seu deslumbramento, que, no passado, aqueles que se aproximavam de Cusco deviam saudar com reverência quem partia dali, como se o fato de ter estado na capital do Império Inca lhes tivesse conferido prestígio, dignidade, uma certa nobreza. Já em tempos pré-hispânicos ela era uma cidade cosmopolita onde, além do quéchua – o runa simi, ou língua geral –, falavam-se todas as línguas e dialetos do império. Hoje ocorre a mesma coisa, com a diferença de que as línguas que escuto ao meu redor, nestas primeiras horas mágicas do dia, provêm do mundo inteiro, porque o turismo que invade Cusco ao longo do ano procede dos quatro pontos cardeais.

Já estive umas sete ou oito vezes em Cusco e agora volto, depois de cinco anos. Como sempre, nos dois primeiros dias, sinto os 3.400 metros de altura na pressão das têmporas e no ritmo acelerado do coração, mas a emoção é a mesma, um sentimento agridoce de assombro ante a beleza da paisagem urbana e geográfica e de inquietação ante o pressentimento da infinita violência que está por trás desses templos, palácios e conventos, onde, como em poucos lugares do planeta, mesclam-se e fundem-se duas culturas, duas histórias, costumes, línguas e tradições diferentes.

Os arqueólogos descobriram que, nas entranhas cusquenhas, há substratos pré-incaicos importantes, que remontam à antiquíssima época da desintegração de Tiahuanaco, e também que na raiz de muitas construções incas está presente o legado dos waris. Mas, à simples vista, o que se manifesta por toda parte, nas cidades, nas aldeias e no campo cusquenhos, é a fusão do incaico e do espanhol. Templos, igrejas e palácios estão levantados com as pedras monumentais, retilíneas e simétricas das grandes construções incas e muitas de suas ruelas são as mesmas que conduziam aos grandes adoratórios do Sol e da Lua, às residências imperiais ou aos santuários das vestais consagradas ao culto solar. O resultado dessa mestiçagem, presente por toda parte, deu lugar a formas estéticas nas quais já é difícil, se não impossível, distinguir qual é precisamente o aporte de cada civilização.

A mestiçagem é tanta que é difícil distinguir o aporte de cada civilização

Um bom exemplo disso, e também do progresso experimentado por Cusco nos últimos cinco anos, é a rota do barroco andino. Percorrer antigamente os templos coloniais da província de Quispicanchi era árduo e frustrante, por causa dos maus caminhos e do estado de deterioração em que aqueles se encontravam. Hoje há uma moderna estrada e a restauração das igrejas de Canincunca, Huaro e Andahuaylillas está concluída e é magnífica. As três igrejas são uma verdadeira maravilha e é difícil dizer qual é mais bela. Muros, telhados, retábulos, campanários, telas, entalhes, afrescos, até mesmo o veterano órgão de Andahuaylillas, luzem impecáveis. Mas o mais importante é que elas estão longe de ser museus, ou seja, de ter ficado congeladas no tempo. Pelo contrário, em grande parte graças ao empenho dos jesuítas que estão a cargo delas e dos voluntários que os ajudam, elas se encontram vivas e atuantes, com escolas, oficinas, bibliotecas, centros de formação agrícola e artesanal, unidades de saúde, escritórios de promoção da mulher, consultórios jurídicos e de direitos humanos e até uma oficina de luteria (em Huaro) na qual os jovens aprendem a fazer harpas, violões e violinos. As comunidades que rodeiam essas paróquias denotam um dinamismo pujante que parece se irradiar desses templos.

Passei bastante tempo contemplando as pinturas, entalhes, afrescos e esculturas das igrejas de Quispicanchi. O índio está tão presente que às vezes supera o espanhol. É evidente que isso ocorreu naturalmente, sem premeditação nenhuma por parte dos pintores e artesãos indígenas que os elaboraram, colocando de maneira espontânea naquilo que faziam sua sensibilidade, suas tradições, sua cultura. As peles dos santos e dos Cristos foram escurecendo; os rostos, o cabelo, ficando brilhantes; os olhos e até as posturas e gestos, indianizando-se; e a paisagem também foi se povoando de lhamas, vicunhas e viscachas, e de aroeiras, sabugueiros e milharais.

Entre as salinas de Maras e as plataformas circulares de Moray, no vale do Urubamba, assisto a uma pequena procissão em que os carregadores da imagem de Nossa Senhora do Carmo – uma indiazinha recoberta de joias – vão disfarçados de incas e, depois, é celebrada uma festa em que grupos de estudantes da Universidad de San Antonio Abad dançam huaynos e pasillos. Um antropólogo, do mesmo centro acadêmico, explica-me que tanto a música como os trajes multicoloridos dos dançarinos são, todos, de origem colonial. A mestiçagem reina em todo lugar nesta terra, inclusive nesse animado folcloreque os guias turísticos se empenham em fazer retroceder até os tempos de Pachacútec.

Inca Garcilaso foi o primeiro a reivindicar seus ancestrais indígenas e hispânicos

Mas muitas coisas mudaram também em Cusco nestes últimos cinco anos. Um dos melhores escritores cusquenhos, José Uriel García, publicou nos anos vinte do século passado um precioso ensaio no qual chamava a chichería de “a caverna da nacionalidade”. Nessa rústica e miserável taberna, de fogão e paredes sujas, onde se comiam os guisados populares mais picantes e os paroquianos se embebedavam com a forte chicha de milho fermentado, estava-se forjando, segundo ele, “o novo índio”, crisol da peruanidade. Pois bem, na Cusco de nossos dias, se as chicherías não desapareceram totalmente, restam hoje muito poucas e é preciso procurá-las – com lupa – nos subúrbios mais afastados. Só sobrevivem nas aldeias e nos povoados mais remotos. Na cidade, foram substituídas por pollerías (que servem frango), chifas (restaurantes chineses), pizzarias, McDonald’s, restaurantes vegetarianos e de comida fusion. Ainda proliferam por toda parte os modestos albergues para mochileiros e hippies que vêm a Cusco tomar um banho de espiritualidade bebendo mate de folha de coca (ou mastigando-a) e setransubstanciando com os apus, os espíritos andinos. Mas, além disso, tanto na cidade como à beira do Urubamba e ao pé de Machu Picchu, surgiram hotéis de cinco estrelas, muito modernos. Alguns deles, como El Monasterio e Las Nazarenas, restauraram com esmero e bom gosto antigos edifícios coloniais.

Nesta cidade, em grande parte bilíngue, os cusquenhos de idioma quéchua costumam se gabar de falar o quéchua mais clássico e puro do Peru, o que, como é natural, provoca inveja e rancor, além de acusações de arrogância, nas demais regiões andinas onde a língua dos incas está bem viva. Como não falo quéchua, não posso me pronunciar a respeito. Mas posso dizer que o espanhol que se fala em Cusco é um modelo de elegância, desenvoltura e discrição, principalmente quando falado pelas pessoas cultas. Recheado de lindos arcaísmos, soa com uma música alegre que parece saída dos mananciais saltitantes que descem das colinas, ou, se se endurece nas discussões e arrebatamentos, soa grave, solene e antigo, com um ar de autoridade. Está cuidadosamente pronunciado, com erres e jotas vibrantes, e é sempre eloquente, discreto, amável e educado.

Não é de estranhar, portanto, que aqui tenha nascido um dos grandes prosistas do Renascimento espanhol: Inca Garcilaso de la Vega. A provável casa em que nasceu foi reabilitada com tanto excesso que já é irreconhecível. Ainda assim, ele passou aqui sua infância e adolescência – e viu com seus próprios olhos e guardou para sempre em sua memória essa época tumultuada e terrível da conquista e a ruptura cultural e humana que gerou. Aqui escutou os sobreviventes da nobreza incaica, à qual pertencia sua mãe, chorarem esse glorioso passado imperial “que se tornaria vassalagem” e que evocaria depois, na Andaluzia, nas formosas páginas do livro Comentários Reais. Sempre que vim a Cusco, peregrinei até a casa de Inca Garcilaso, o primeiro a reivindicar seus ancestrais indígenas e espanhóis e a chamar a si mesmo de “um peruano”.

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© Mario Vargas Llosa, 2015.

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