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Coluna
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Culpas e desculpas

Os 434 assassinados e desaparecidos na ditadura, os milhares de torturados, humilhados, violentados, desconstruídos, exigem uma reparação moral

Fim de ano, fim de mandato, escândalos tipo fim-de-mundo e um mundo cada vez mais estapafúrdio, excêntrico. O mês sugere festas, afeto, mas o calendário e a agenda impõem solenidade e receios.

O cinquentenário do golpe de 1964 será lembrado dentro de alguns dias e não em 13 de dezembro (quando o regime autoritário transformou-se na sanguinária ditadura), mas no dia 10, próxima quarta, quando a Comissão Nacional da Verdade entregará à presidente Dilma Rousseff o relatório sobre as violações aos direitos humanos cometidos pelo Estado brasileiro.

Assunto penoso, inconfortável: mesmo conhecendo-se boa parte do seu teor, a seriedade dos seus integrantes e o senso de responsabilidade do seu último coordenador, Pedro Dallari, não será difícil prever as emoções e tensões que o relato provocará.

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Até agora em meio a sustos e solavancos percorremos o périplo de buscar da verdade, a partir do dia 10 algumas das tenebrosas hipóteses deverão tornar-se irrefutáveis evidências. Conviver com elas não será fácil. Melhor dizer: será tremendamente complicado.

Qualquer que seja o destino das apurações – o encaminhamento penal ou o arquivamento – desta vez não poderemos recorrer aos habituais mecanismos de atenuação ou despiste.

Como eterna criança, a sociedade brasileira acostumou-se a fantasiar sua imagem, índole e história. Tardiamente adulta, não pode fechar os olhos ou olhar para o lado. O acontecido está ai, escancarado, nomeado, quantificado, circunstanciado. Impossível deletá-lo. Tragédias não evaporam, mesmo quando não percebidas.

Os 434 assassinados e desaparecidos, os milhares de torturados, humilhados, violentados, desconstruídos – vivos ou falecidos – exigem uma reparação moral, a material já está em curso. A anistia, qualquer que seja a nossa compreensão e avaliação sobre seus efeitos, não exime os pactuantes das imperiosas revisões e complementações.

Um compromisso de anistia, mesmo legalmente respeitado, não se sustentará sem os gestos e palavras capazes de servir ao processo de reconciliação. Esta é a palavra-chave. E as forças armadas não parecem inclinadas a exibi-los e pronunciá-las. A autocrítica dos grupos e facções que participaram da luta armada, não mereceu uma contrapartida daqueles que tutelavam o Estado e em seu nome cometeram barbaridades contra inocentes.

E preciso reconhecer que o debate que precedeu a anistia nos anos setenta foi açodado. Todos tinham pressa: a imprensa em livrar-se da censura, os exilados em retornar ao país, os cassados em retomar sua militância política, os empresários em acabar com os privilégios dos apaniguados e até mesmo certos segmentos militares queriam livrar-se do papel que desempenhavam.

Agora, diante da crueza deste relatório e diante da contingência de aplicar – ou não – o pacto da anistia será preciso acabar com o regime de urgência, substituir a pressa pela disposição de falar, dizer tudo, não economizar palavras. Sobretudo confrontar tabus.

A opção de desculpar-se não pode continuar banida do nosso vocabulário institucional, nem os verbos “admitir” e “reconhecer” excluídos do repertório de expressões republicanas. A infalibilidade é herança feudal.

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