Vagão rosa, para não ser encoxada
O que faz das mulheres ainda hoje uma ameaça tão grande que, mesmo quando vítimas, são julgadas culpadas?
Alô, mulheres. Se pegarem trem ou metrô em São Paulo, prestem atenção às orientações do sistema de som: “Se você estiver com vontade de ser violentada, ou ao menos receber uns apertões na bunda e nos peitos, siga para o vagão comum. Se estiver cansada, introspectiva, teve um dia difícil, está com TPM, vá para o rosa e viaje tranquila”. Uma excelente semana a todas.
Poderia ser uma piada ou um filme de horror futurista. Mas é sério e não é ficção distópica. Na prática, essa é a mensagem do projeto de lei aprovado em 4 de julho pela Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo. De autoria do deputado Jorge Caruso (PMDB), ele cria um vagão exclusivo para mulheres no metrô e nos trens. Algo similar já existe no Rio de Janeiro. A lei poderá ser vetada ou sancionada pelo governador Geraldo Alckmin (PSDB), candidato à reeleição, nos próximos dias. Na sexta-feira (18), feministas reuniram-se no centro da capital paulista para um ato em protesto contra a criação do “vagão rosa”.
Não é muito, mas muito estranho mesmo?
Estamos em 2014, há uma mulher na presidência do Brasil. Mas acredita-se necessário criar um vagão só para mulheres nos trens de transporte público da cidade mais cosmopolita do país. Por quê? Porque, se ficarem misturadas aos homens, as mulheres serão encoxadas, apalpadas, abusadas e até estupradas. E é verdade, tudo isso acontece. Tanto que um grupo feminista fez recentemente uma campanha distribuindo alfinetes para as moças enfiarem nos abusadores do metrô.
Estamos em 2014, há uma mulher na presidência do Brasil. Mas acredita-se necessário criar um vagão só para mulheres nos trens de transporte público da cidade mais cosmopolita do país.
É bizarro. Diante de uma mulher, num espaço apertado, atulhado de gente, alguns homens sentem-se autorizados a abusar dela. Isso diz de cada indivíduo e, claro, diz também dessa sociedade. Seria importante escutar esses homens para entender qual é a questão de cada um com seu próprio pênis. Talvez vivam um sentimento de impotência avassaladora, para muito além da ereção que conseguem ou não ter. Mas é só uma hipótese para tantas que só podem ser compreendidas na história de cada um.
Mais bizarro do que o ato individual, porém, é o ato público. Mais perigosa é a “solução” que o poder público, nesse caso o parlamento paulista, deu para a violência. Comete-se violência sexual contra as mulheres nos trens, segrega-se as vítimas. Seguindo essa lógica, em breve poderia se propor que, nas ruas e espaços coletivos, as mulheres passassem a usar burca. Assim, os homens não seriam “tentados” a cometer crimes sexuais.
Se o “vagão rosa” (o apelido já é duro de aguentar!) vingar, é um retrocesso muito maior do que pode parecer a um primeiro olhar distraído. É alarmante que os protestos não sejam mais numerosos e barulhentos, dada a seriedade do que está em jogo. Em nome das supostas boas intenções de “proteger as mulheres”, o que se faz, de fato, é reforçar duas ideias do senso comum, interligadas, que persistem há séculos e estão na base da violência sexual.
A primeira delas é que a culpada é a vítima. Seja porque usou “roupas sensuais”, seja porque “se expôs” a uma situação potencialmente perigosa. Nesse caso, apenas por existir. Por ser mulher, precisa ser colocada num “vagão especial”. Sua condição, em si, despertaria sentimentos incontroláveis em alguns homens. Então, nada de ficar perto desses espécimes ou eles não poderão resistir e cometerão a violência. Como se esses homens não fossem responsáveis pelos seus atos, como se fossem incapazes de se controlar, como se fossem animais, eliminando a cultura da equação e deixando restar uma ideia tacanha de natureza.
No conceito do “vagão rosa” as mulheres são colocadas na posição de objetos de desejo ou objetos de posse. E os homens são vistos como vítimas do próprio desejo, sem a necessidade de se responsabilizar por ele. Acho curioso que homens não façam protestos contra o “vagão rosa”: a ideia nele embutida sobre o que é ser um homem é ofensiva ao extremo.
Se o “vagão rosa” virar lei, o próximo passo será: se uma mulher não quis ocupar o vagão especial e foi sexualmente abusada no comum, conclui-se o de sempre: “Ela pediu. Se não quisesse ser encoxada, apalpada, estuprada teria entrado no vagão dela”.
A outra ideia fincada no imaginário de homens (e também de mulheres) é mais interessante. As mulheres é que são a ameaça. (E não aqueles que abusam de seus corpos e de suas almas.) Confina-se, cobre-se, esconde-se aquilo que nos envergonha e aquilo que nos coloca em perigo. Quando se propõe – e se aprova – um vagão especial para as mulheres, o que se está fazendo, de fato, é isolar o elemento desestabilizador. Colocar em ambiente controlado quem teria o poder de revelar, expor algo que deve continuar oculto. O segredo, nesse caso, está naquele que esconde – e não naquela que é escondida.
O “vagão rosa” é mais uma tentativa de sujeitar os corpos femininos, ao determinar que só podem ser “transportados” em sistema de segregação.
O “vagão rosa” é mais uma tentativa de sujeitar os corpos femininos, ao determinar que só podem ser “transportados” em sistema de segregação. Uma prova de que, ainda hoje, a imagem social das mulheres difere pouco da visão medieval em que eram compreendidas como “más e impuras”. Não custa lembrar do recente linchamento de uma mulher como “bruxa”, no mesmo estado de São Paulo. (Escrevi sobre isso aqui).
O que há de tão ameaçador nas mulheres?
A buceta, ainda ela. O desembargador Francisco Batista de Abreu, da 16ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça de Minas Gerais ajuda a explicar. Em acórdão publicado no final de junho, ele expõe uma linha de raciocínio fascinante ao justificar por que o valor de 100 mil reais de indenização, determinado pela justiça de primeira instância, deveria ser reduzido para 5 mil reais, como de fato aconteceu no julgamento em segundo grau. O caso refere-se ao que tem sido chamado de “vingança pornô”.
Um homem e uma mulher namoraram, em cidades diferentes, por cerca de um ano. Depois do término da relação, ainda conversavam e trocavam imagens íntimas pela internet. Na descrição do desembargador, as dela eram “ginecológicas”. O ex-namorado, seguindo o roteiro bocejante dos imbecis, quebrou a confiança estabelecida entre eles e tornou público o que era privado. As imagens, que eram consensuais, foram expostas de forma não consensual. Um ato sujeito à punição legal, portanto.
O desembargador Abreu concluiu, porém, que esta seria uma oportunidade para fazer um julgamento moral da vítima, expondo a profundidade do seu entendimento sobre como uma mulher deve lidar com sua vagina e com seu corpo. Depois da divulgação do caso, o processo foi colocado em “segredo de justiça”, limitando o acesso aos autos. Mas o segredo de quem, àquela altura, deveria ser protegido? Da mulher, do homem ou do desembargador?
A seguir, alguns trechos do voto do desembargador Francisco Batista de Abreu publicados na imprensa:
“Quem ousa posar daquela forma e naquelas circunstâncias tem um conceito moral diferenciado, liberal. Dela não cuida. Irrelevantes para avaliação moral as ofertas modernas, virtuais, de exibição do corpo nu. A exposição do nu em frente a uma webcam é o mesmo que estar em público.”
A tal “vingança pornô”, em que imagens feitas em âmbito privado são divulgadas contra a vontade de quem é retratado, num ato de quebra de confiança, já levou ao suicídio adolescentes brasileiras que não suportaram o julgamento moral
“As fotos em momento algum foram sensuais. As fotos em posições ginecológicas que exibem a mais absoluta intimidade da mulher não são sensuais. Fotos sensuais são exibíveis, não agridem e não assustam. Fotos sensuais são aquelas que provocam a imaginação de como são as formas femininas. Em avaliação menos amarga, mais branda podem ser eróticas. São poses que não se tiram fotos. (...) São poses para um quarto fechado, no escuro, ainda que para um namorado, mas verdadeiro. Não para um ex-namorado por um curto período de um ano. Não para ex-namorado de um namoro de ano. Não foram fotos tiradas em momento íntimo de um casal ainda que namorados. E não vale afirmar quebra de confiança. O namoro foi curto e a distância. Passageiro. Nada sério.”
É possível desenvolver uma tese de doutorado na área de psicanálise e direito a partir do voto do desembargador mineiro. Mas, atendo-se a apenas um ponto de seu raciocínio, percebe-se o que é assustador para o magistrado: “As fotos em posições ginecológicas que exibem a mais absoluta intimidade da mulher não são sensuais. Fotos sensuais são exibíveis, não agridem e não assustam (...) São poses para um quarto fechado, no escuro, ainda que para um namorado, mas verdadeiro”.
Para o desembargador, a vagina não é sensual. O que é sensual, segundo ele, não agride nem assusta. É coerente depreender dessa afirmação que a imagem da vagina não só agride o magistrado, como também o assusta. Assim, só pode ser exibida “no escuro”, de forma que não possa ser vista. E para um namorado “verdadeiro”.
Quando o voto se tornou público, lamentou-se em alguns espaços da internet a escuridão em que vive o desembargador Abreu. E até a suposta indigência de sua vida sexual. Mas não se trata de julgá-lo. Como indivíduo, seu Abreu pode até ter medo da vagina. Pode achá-la feia e assustadora. Pode preferir só vê-la no escuro ou não vê-la nunca. É possível ter compaixão por seu Abreu, mas ninguém tem o direito de julgar como seu Abreu se relaciona com a sexualidade do outro e com a sua própria. Isso diz respeito só a ele.
O problema é com o desembargador Abreu, servidor público, investido da Lei. Com a sua pretensão de determinar, como verdade única e universal, registrada nos autos, o que é sensual, o que é erótico, o que é amor “verdadeiro” e quando, como e onde uma vagina pode ser exibida. Assim como determinar que uma mulher que mostra a sua vagina não tem autoestima. O problema é que, ao assim manifestar-se, o desembargador Abreu está representando a Justiça. Seu ato tem efeito direto sobre a vida da vítima – e também sobre as vidas na sociedade brasileira.
A tal “vingança pornô”, em que imagens feitas em âmbito privado são divulgadas contra a vontade de quem é retratado, num ato de quebra de confiança, já levou ao suicídio adolescentes brasileiras que não suportaram o julgamento moral da família, amigos e sociedade. Ao manifestar-se nesses termos, o desembargador está reeditando, para um fenômeno contemporâneo, ligado às novas tecnologias, o velho “ela pediu”. E isso é inadmissível.
O relator do caso, desembargador José Marcos Rodrigues Vieira, defendeu reduzir o valor da indenização dos 100 mil reais determinados em primeira instância para 75 mil reais. Afirmou em seu voto: “Isentar o réu de responsabilidades pelo ato da autora significaria, neste contexto, punir a vítima”. Seu colega, o desembargador Abreu, porém, preferiu julgar a “moral” da vítima, acompanhado pelo terceiro desembargador, Otávio de Abreu Portes. Ao final, determinou-se que 5 mil reais seria um valor suficiente. É possível concluir que, simbolicamente, essa já não é mais uma indenização, mas um pagamento.
O corpo feminino deve ser oculto. Se for exposto, está subentendido que as mulheres assumirão o risco de serem violadas, de terem seus corpos destruídos
O “doutor” enxergaria a vítima como uma “puta”. No sentido de que a prostituta, na sociedade brasileira – e esta é outra enorme violência – é vista como aquela que não tem direito nem ao próprio corpo, nem à Lei. Isso ficou de novo muito claro em junho, quando o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo inocentou um fazendeiro preso em flagrante ao estuprar uma menina de 13 anos. A justificativa: ela seria prostituta, o que teria levado o criminoso a errar sobre a sua idade. Em resumo: com prostituta se pode tudo. O que as coloca fora do corpo e fora da Lei, de várias e complexas maneiras, com consequências sempre aterradoras.
Como afirmam organizações de prostitutas, infelizmente muito pouco escutadas, não existe prostituição envolvendo menores de idade. Com crianças e adolescentes só existe estupro e abuso sexual. Mas esse não foi o entendimento dos desembargadores paulistas. Assim como, ao reduzir em 95 mil reais a indenização devida à mulher que teve imagens do seu corpo divulgadas contra a sua vontade, o que o tribunal mineiro fez foi: não mais determinar ao réu uma indenização pelo dano causado, mas dar um valor à mulher.
É o que se compreende da justificativa contida no voto, em especial nesse ponto: “Mas, de qualquer forma, e apesar de tudo isso, essas fotos talvez não fossem para divulgação. A imagem da autora na sua forma grosseira demonstra não ter ela amor-próprio e autoestima”. À vítima, que foi quem passou a ser julgada e enquadrada como alguém que não se dá valor, é concedido um valor aviltantemente mais baixo do que aquele determinado em primeira instância como indenização pelo ato do réu.
Mas qual é o valor de uma mulher? Como diz Renata Corrêa, em um texto bonito no Biscate Social Club:
“Por essa e por outras que para uma vida livre todas as mocinhas, garotas, meninas, mulheres, cidadãs do mundo não deveriam valer nada. Eu particularmente não valho um centavinho furado. Ninguém pode me medir, me pesar, me trocar ou me comprar: não tenho preço, código de barras, cifrão ou vírgula. Quem tem o direito de dar preço para minha alma? E pro meu corpinho? Nobody, baby. Não valho nada. Não me atribuo valor algum. Não tô a venda: tô vivendo sem conta, sem mercantilismo amoroso, fraterno ou sexual. E também não tô comprando. Mas isso é outra história”.
De volta ao “vagão rosa”, que leva as mulheres a uma viagem sem movimento algum, na qual estão estacionadas no mesmo lugar, para que não exista deslocamento nem nada se altere. O “vagão rosa”, destinado ao transporte das mulheres para que não sejam encoxadas, bolinadas ou até estupradas, é o mesmo lugar simbólico destinado à vagina em visões como a do desembargador mineiro. O corpo feminino, a vagina como sua máxima potência, deve ser oculto. Se for exposto, está subentendido que as mulheres assumirão o risco – e a responsabilidade – de serem violadas, de terem seus corpos (e suas almas) destruídos.
Resta se perguntar que vagão é esse, o que exatamente ele transporta de um lado a outro e qual é o seu destino.
Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora dos livros de não ficção Coluna Prestes - o Avesso da Lenda, A Vida Que Ninguém vê, O Olho da Rua, A Menina Quebrada, Meus Desacontecimentos e do romance Uma Duas. Email: elianebrum.coluna@gmail.com . Twitter: @brumelianebrum
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