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Coluna
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O homem inacabado

Homenagem ao meu amigo Donizete Galvão que não conseguiu negacear de um infarto fulminante

O ano de 1983 terminava mal para mim. Desempregado, com filho recém-nascido para criar e sem perspectiva de melhorar de vida, agrediam-me a decoração e as canções natalinas que asfixiavam o centro de Juiz de Fora. Tinha 22 anos e acabava de ser demitido do Diário Mercantil, onde liderara uma fracassada greve contra o recorrente atraso de salários – havia seis meses que vivíamos apenas de “vales”. Mãos enfiadas nos bolsos da calça, caminhava sem rumo, evitando pensar na manhã seguinte. No dia 22 de dezembro, ao voltar para casa após mais uma jornada inútil, encontrei um recado do meu amigo Fernando Cesário pedindo que o contatasse em Cataguases. Liguei, e ele, entusiasmado, me disse que um conterrâneo nosso poderia talvez me ajudar a arrumar trabalho.

Anotei o número e telefonei para José Tarcísio Lima, engenheiro florestal, hoje importante pesquisador na Universidade Federal de Lavras, na época professor de uma faculdade em Alfenas, no sul de Minas Gerais. Eu sabia de sua existência, éramos da mesma geração, mas não o conhecia pessoalmente. Tarcisim me informou de uma vaga para jornalista na cidade, para a qual imediatamente me candidatei – devo a ele esse significativo momento da minha vida. No começo de janeiro de 1984, lá estava eu, vivendo numa república, distante cerca de 280 quilômetros de Juiz de Fora, cinco horas de ônibus, um lugar cercado por laranjais e cafezais, à beira da represa de Furnas.

Fui morar na casa que Tarcisim dividia com outros dois professores (além de Pylludim, um viralata preto, de quem me tornei colega): Dario, da engenharia agrícola, e Donizete, da engenharia florestal. Estranhei o nome, Donizete, quando apresentados, mas me aquietei. Qual não foi minha surpresa, quando, algum tempo mais, me deparei com uma Donizete, professora do curso de Letras! Então, descobri, confuso, que no sul de Minas, assim como em parte do interior de São Paulo, Donizete era um nome comum, muito usado para batizar meninos, mas também eventualmente utilizado como nome composto feminino, neste caso, em geral, antecedido por Maria... Tratava-se de uma homenagem ao padre Donizetti Tavares de Lima (1882-1961), que tornou-se famoso na região, na década de 1950, por sua fama de milagreiro – desde 1996 corre no Vaticano seu processo de beatificação. Em 1985, voltei para Juiz de Fora e, em 1990, migrei para São Paulo, e nunca mais ouvi falar em Donizetes, homens ou mulheres.

Até conhecer, em maio de 2000, outro Donizete, o poeta Donizete Galvão, de quem me tornaria mais que amigo, um irmão que comungava a mesma fé no poder transformador da literatura. Não me lembro exatamente em que circunstância apertamos as mãos pela primeira vez, mas a data deste encontro está inscrita na primeira página do meu exemplar de seu magnífico livro de poemas Ruminações, em letra incerta, mas legível, assinalando a dedicatória: “estes mapas de dor e descontentamento”. Se não recordo o local e o evento, não me esquecerei jamais que, ao nos aproximarmos, sem titubear, perguntei, “De que cidade do sul de Minas você é?”. Ele, surpreso, respondeu, forçando intencionalmente o erre típico do sotaque da região: “De Borda da Mata, perto de Poços de Caldas, conhece?” Disse que não e, entre sorrisos, expliquei porque tanta certeza de sua origem...

Passei, então, a freqüentar os famosos Sabadonis – referência explícita, mas irônica, aos Sabadoyles –, na confortável e aconchegante casa comandada pela sempre paciente Ana Tereza, na Chácara Santo Antônio. Lá aportavam, indistintos, poetas como Heitor Ferraz Mello, Tarso de Melo, Paulo Ferraz, Ésio Macedo Ribeiro, Ruy Proença, Carlos Machado, Fábio Weintraub, Rosa Mattos, Chantal Castelli, Priscila Figueiredo, Sérgio Alcides; prosadores como Humberto Werneck, Ana Paula Pacheco, Leusa Araújo, Mario Rui Feliciani, Sônia Barros, Ronaldo Cagiano, Verônica Stigger; ensaístas, como Ivan Marques, Viviana Bosi, Eduardo Sterzi; e muitos e mais, porque o coração de Donizete, embora frágil, era imenso.

Gostava de ouvir os causos saborosos que ele contava – “Tinha uma sapataria em Borda da Mata que exibia uma placa assim: ‘Conserta sapato. Num faz sapato. Às vezes faz’” – e ria, com sua risada contida, tímida. Escutava atento suas ponderações sobre tudo, nascidas da reflexão de alguém para quem o que importava eram “as coisas, a paisagem, o cotidiano”, “sem perder uma certa visão da ligação delas com o cosmos, com o lado sagrado da existência”. Donizete era um menino com olhos arregalados, que nunca saiu de Borda da Mata, alguém que “nasceu destinado / à terra / à enxada / às tarefas / às lidas com o gado”, e que, vestido num corpo urbano, “tateia em um mundo / que sempre lhe será estranho”. No dia a dia, Donizete atualizava as ruminações de homem inacabado, ouvindo o silêncio das pedras, auscultando o coração de um mundo mudo. Amigo generoso, identificávamo-nos nos mesmos desejos, tornar esse lugar de passagem, árido e sem sentido, em um “sonho brando / sob um manto cálido”. Sua poesia arrebata, porque, profunda, é límpida, azul navalha cortando a carne e o tempo.

Há sete anos, Donizete mergulhou num coma e, quando emergiu, mostrou-se ávido por administrar o tempo. Havia razão para sua urgência. Na madrugada do último dia 30, não conseguiu negacear de um infarto fulminante. Agora, Donizete Galvão é um “homem sem senhor” que “reina na matéria, sua clareira de liberdade”.

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Para que essa coluna não se torne obituário, apelo aos meus amigos, por favor, não morram! As mortes já me pesam o lado esquerdo do peito.

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