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O negro que pôs um pé no Polo Norte pela primeira vez

Nascimento de Matthew Henson, membro da expedição de 1909, completa 150 anos

Manuel Ansede
Matthew Henson, fotografado em 1908 no Canadá.
Matthew Henson, fotografado em 1908 no Canadá.Robert Peary
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“Acho que sou o primeiro homem a se sentar no topo do mundo”, comemorou Matthew Henson em 6 de abril de 1909. Estava no Ártico, coberto de gelo, e comunicava o feito a Robert Peary, o chefe da expedição que tentava conquistar pela primeira vez o Polo Norte. Havia chegado 45 minutos antes de Peary, um capitão de fragata conhecido por seu despotismo e sua falta de escrúpulos. Henson, um órfão de família pobre que só aprendera a ler aos 12 anos, antecipou-se a um militar de alta patente. E ainda por cima era negro.

“Peary estrilou”, recordou Henson anos depois. Entretanto, o branco passou à história como o conquistador do Polo Norte e foi enterrado com honras militares sob um impressionante monumento no Cemitério Nacional de Arlington, em 1920. O negro, como os quatro esquimós que os acompanhavam, foi rapidamente esquecido. Encontrou emprego no Departamento de Alfândegas, depois de trabalhar num estacionamento, e acabou enterrado quase como indigente num cemitério do Bronx, em Nova York, em 1955.

"Acho que sou o primeiro homem a se sentar no topo do mundo"

Em 6 de agosto completam-se 150 anos do nascimento de Matthew Henson, para muitos o primeiro ser humano a colocar os pés no Polo Norte. Nasceu em Maryland, em 1866, um ano depois da abolição da escravidão dos negros nos EUA. Aos 12 anos, órfão e sem ter jamais pisado numa escola, foi até um navio mercante no porto de Baltimore e, segundo sua biografia oficial, Dark Companion (“companheiro escuro”, 1947), disparou para o capitão: “Meu nome é Matthew Alexander Henson e quero ir para o mar”.

Naquele navio o menino aprendeu a ler e a escrever. Prosperou. Arrumou um modesto trabalho numa loja de Washington, e lá, em 1889, conheceu Robert Peary, que já havia comandado expedições de exploração da Groenlândia sobre trenós puxados por cães. Nasceu uma amizade. Um ano mais tarde, Henson, com 24 anos, entrou para a sua primeira missão, que percorreu o norte da grande ilha. Na década seguinte, estiveram juntos em diversas expedições, num total de 15.000 quilômetros sobre o gelo da Groenlândia e Canadá, segundo a contagem da National Geographic. Era o aquecimento para a conquista do Polo Norte, que alguns pesquisadores hoje colocam em dúvida.

Matthew Henson e os inuits Ootah, Egingwah, Seegloo e Ookeah.
Matthew Henson e os inuits Ootah, Egingwah, Seegloo e Ookeah.Robert Peary

Os inuits (como hoje são chamados os esquimós) Ootah, Egingwah, Seegloo e Ookeah, participantes da expedição, louvavam as habilidades de Henson para caçar, dirigir os cães e balbuciar seu idioma. “Era mais esquimó que alguns deles”, brincou Peary. Em sua autobiografia de 1912, intitulada Um Explorador Negro no Polo Norte, Henson elogiou o senso de humor dos esquimós e sua capacidade de trabalho. “É verdade que os esquimós são de pouco valor para o mundo comercial, devido provavelmente a seu isolamento geográfico, mas estas mesmas pessoas iletradas e sem civilizar prestaram uma valiosa ajuda no descobrimento do Polo Norte”, escreveu. E acrescentou: “A limpeza dos esquimós deixa espaço para muitas melhoras”.

A suposta sujeira dos inuits não devia ser tão repulsiva assim. Em 1986, o pesquisador americano Allen Counter viajou à Groenlândia numa missão científica e encontrou dois esquimós octogenários mestiços. Um tinha mistura com branco, e o outro com negro. Aqueles dois anciões eram os dois filhos que Peary e Henson tiveram furtivamente com duas mulheres esquimós. Counter, professor da Universidade Harvard, anunciou ao mundo a existência de Anaukaq Henson e Kali Peary. E os levou em maio de 1987 para realizar o seu sonho: conhecer o lugar de nascimento dos seus pais e visitar seus túmulos.

Counter, também explorador negro, tem uma biografia épica. Em 1993, descobriu o único quilombo de escravos africanos nos Andes equatorianos. Como professor de neurologia em Harvard, visita os povos indígenas da América Latina para investigar os efeitos das intoxicações por chumbo e mercúrio nas crianças que trabalham nas minas de ouro ou reciclam baterias de carro.

"O Departamento de Defesa dos EUA afirma que Henson foi o primeiro em pisar no Polo Norte"

Em 1988, Counter utilizou seu carisma para convencer o então presidente dos EUA, Ronald Reagan, a transferir os restos de Henson para o Cemitério Nacional de Arlington, junto com os de Peary e outros heróis da história norte-americana, incluindo os sete astronautas mortos no acidente da nave Challenger um ano antes. “Naquele dia histórico [6 de abril 1909], foi Henson, um afro-americano, o primeiro a chegar ao Polo e a fincar a bandeira norte-americana”, diz sua biografia no cemitério do Departamento de Defesa dos EUA.

Entretanto, existem dúvidas de que Henson, Peary e os quatro esquimós realmente chegaram ao Polo Norte. A organização Guinness World Records recorda que a Real Sociedade Geográfica da Grã-Bretanha respaldou durante o século XX a vitória da expedição de Peary frente à do também norte-americano Frederick Cook, que afirmou, aparentemente de forma falsa, que havia chegado lá um ano antes. No entanto, a Real Sociedade Geográfica hoje em dia não apoia nem Peary nem Cook.

A Sociedade Geográfica Nacional dos EUA patrocinou a expedição de Peary, mas em 1989 concluiu, após analisar documentos e as sombras das fotos, que ele na verdade parou a cerca de oito quilômetros do Polo Norte. A velocidade da equipe no regresso, muito mais célere do que na ida, também despertou suspeitas, apesar de em 2005 os aventureiros Tom Avery e Matty McNair terem repetido a viagem de Peary e Henson no mesmo tempo, sugerindo que isso era possível, apesar das grandes diferenças entre as duas expedições.

Provavelmente nunca se saberá se Henson, um negro que roçou a era da escravidão, foi realmente o primeiro ser humano a pisar no Polo Norte. Mas, seja como for, sua vida merece reconhecimento. No ano 2000, Henson recebeu postumamente a medalha Hubbard, o maior prêmio da Sociedade Geográfica Nacional, reservado aos heróis da exploração. As mãos brancas de Robert Peary haviam recolhido a mesma medalha em 1906. Quase um século antes.

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