_
_
_
_
_

Um inédito ‘homicídio’ entre orangotangos

Cientistas observam pela primeira vez um brutal ataque envolvendo fêmeas dessa espécie

Três dos quatro orangotangos envolvidos no episódio.Foto: reuters_live
Mais informações
Dez espécies emblemáticas ameaçadas pela mudança climática
Animais parecem cada vez mais humanos
Chimpanzés caçadores dão pistas sobre os primeiros humanos
A odisseia de ser um elefante
O triunfo do homem-macaco
Espécies ameaçadas em 2015

No começo da tarde de 13 de julho de 2014, a primatologista Anna Marzec presenciou um acontecimento tão excepcional como desagradável. No meio da selva de Bornéu, uma fêmea adulta de orangotango chamada Sidony foi vítima de uma surra brutal, que acabaria por tirar sua vida. Os agressores, a fêmea Kondor e o macho Ekko, se tornavam assim os primeiros assassinos da sua espécie observados pela ciência, num brutal episódio com ramificações truculentas.

Casos tão extremos de violência já haviam sido observados em chimpanzés há quatro décadas, quando Jane Goodall nos contou o sangrento conflito entre dois clãs após a matança de Godi. Mas nada fazia supor que isso poderia acontecer também entre orangotangos, e ainda mais tendo fêmeas como protagonistas: um ataque coordenado, causando a morte de um animal adulto.

São quase 14h na reserva de Tuanan (Indonésia) quando Kondor, uma fêmea jovem (15 anos), está em pleno cortejo com Ekko, um macho prestes a alcançar uma posição importante nesta área. Nesse momento avistam Sidony, uma fêmea adulta (35 anos), e seu filhote Sony (4 anos), e decidem se aproximar dela. Ekko opta por inspecioná-la sexualmente e, sem mostrar maior interesse, retorna para junto de Kondor, com quem começa a copular. Então Sidony começa a se afastar, mas Kondor decide interromper o coito e avançar contra a rival.

"Uma coisa é ver algo pela primeira vez quando você sabe que pode acontecer, mas neste caso era algo que eu absolutamente não esperava", diz Marzec

Kondor ataca Sidony, e Ekko decide apoiar sua companheira na agressão, desatando juntos um ataque de inusitada fúria, que durou 33 minutos em uma violenta primeira fase: Kondor inicialmente golpeia Sidony, então Ekko, de novo Kondor, os dois de uma vez... Alternando-se nos golpes e dentadas, enquanto um fere a vítima o outro barra qualquer tentativa de fuga. “O ataque foi em coalizão, contínuo e coordenado. Todos os ataques foram iniciados por Kondor, mas Ekko infligiu as lesões mais graves e foi mais eficaz em negar a Sidony a oportunidade de escapar”, dizem Marzec e seus colegas em um relato publicado na revista científica Behavioral Ecology and Sociobiology.

Os gritos de Sidony atraíram outro macho dominante, Guapo, que conseguiu afastar Ekko e repelir as seguintes agressões de Kondor, a jovem fêmea que continuava decidida a causar o maior estrago possível, voltando a tentar os ataques repetidamente durante três dias. Guapo freava as investidas enquanto a fêmea e seu filho Sony lambiam suas feridas. Dez dias depois do ataque, Sony se afastou da mãe. Quatro dias depois, Sidony morria por causa das lesões sofridas.

A fêmea agressora havia perdido sua cria um mês antes, em circunstâncias misteriosas, e estava muito atraente para os machos naquele momento

Como se explica este episódio? Os pesquisadores consideram que há vários fatores determinantes. Em suas notas, aparece um ataque de Sidony a Kondor em 2009, quando esta quis molestar uma das suas filhas. Mas, sobretudo, um episódio traumático: um mês antes da briga, Kondor havia perdido seu filhote de três anos em circunstâncias misteriosas. “É muito raro que uma mãe orangotango perca a sua cria”, afirma Marzec, da Universidade de Zurique, observando que isso não era visto havia mais de uma década.

Desde que perdeu o seu filhote, Kondor ficou rodeada de machos e, precisamente, deve ter ficado prenha nos dias do conflito, segundo os cálculos dos pesquisadores. Essas condições implicam que naquele momento era extraordinariamente atraente para machos como Ekko. “Esta seria a razão para que a apoiasse neste ataque, para prolongar a associação com ela e aumentar suas chances de gerar descendência”, deduz Marzec. Os escassos conflitos entre fêmeas, quando ocorrem, não costumam durar muito tempo, apenas uma escaramuça. Neste caso, Kondor foi muito persistente em sua agressão porque tinha apoio masculino, algo inusitado. Também não havia registro de um macho tentando proteger a agredida, como fez Guapo. Ekko voltou a passar perto da sua vítima posteriormente e não demonstrou nenhuma intenção de lhe fazer mal.

A floresta que serve de habitat aos orangotangos diminuiu por causa da indústria madeireira, embora haja um recente princípio de recuperação, segundo Marzec. Os machos podem se afastar, mas as fêmeas permanecem sempre onde nasceram e precisam competir entre si por espaço e recursos limitados. “Devido à perda do seu habitat, esperávamos ver uma maior competição entre as fêmeas, mas não a ponto de observar ataques letais.”

A parte mais violenta do ataque coordenado durou mais de meia hora. Mas a fêmea Kondor passou três dias tentando causar mais danos a Sidony, que morreu duas semanas depois

“Este caso é muito diferente dos ataques letais relatados entre chimpanzés. Primeiro porque foi uma competição entre fêmeas, iniciada e mantida por uma fêmea e dirigida contra outra. E tampouco foi um ataque infanticida, a cria da vítima não foi alvo e não sofreu nenhuma lesão”, afirma a primatologista. Os orangotangos formam um gênero de primatas socialmente muito diferentes dos chimpanzés, e esse tipo de ataque violento nunca havia sido visto, nem se tratava de uma possibilidade crível.

“No momento do ataque eu fiquei desconcertada, é óbvio. Uma coisa é ver algo pela primeira vez quando você sabe que pode acontecer, mas neste caso era algo que eu absolutamente não esperava”, disse Marzec. Passado o susto, ela começou a tomar notas: “Sabíamos que era muito incomum, e nossa prioridade era documentar o ataque com o maior detalhamento possível”. O trabalho dos cientistas, inclusive os que têm a sorte de se dedicarem a observar primatas em plena selva, pode ser tão tedioso como o dos plantões dos paparazzi: tomar notas sobre as rotinas dos animais, do que se aproximam, o que comem e onde, etc.. Assim, ao longo de 11 anos, haviam transcorrido 26.000 horas de observações da equipe na reserva de Tuanan, até que o sangue salpicou a pacata vida destes orangotangos.

Mais informações

Arquivado Em

Recomendaciones EL PAÍS
Recomendaciones EL PAÍS
_
_