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“Os trotes são tortura”

O pesquisador Antônio Almeida, que estuda há 14 anos os comportamentos violentos nas universidades do Brasil, critica o silêncio das instituições diante os abusos

María Martín
O pesquisador Antônio Almeida.
O pesquisador Antônio Almeida.arquivo pessoal

O escândalo dos supostos estupros na Faculdade de Medicina da universidade de São Paulo estourou nas mão dos seus responsáveis, mas as relações perversas entre seus alunos não são novidade. Entre os casos mais recentes está o de uma aluna da Universidade do Sudoeste da Bahia que, em 2013, foi obrigada a chupar os testículos de um boi e acabou no hospital com a boca sangrando; ou os que ocorreram esta semana em Adamantina, no interior de São Paulo, onde uma dezena de alunos jogou uma substância abrasiva nos calouros. Um deles pode perder a visão de um olho, outra teve queimaduras de terceiro grau do umbigo para baixo.

O professor Antônio Almeida estuda há 14 anos os trotes nas universidades brasileiras. Os trotes, para Almeida, não podem ser considerados rituais de passagens e sim uma prática de tortura.

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P. O que acontece nas Universidades do Brasil?

R. O trote é um fenômeno bastante presente nas universidades brasileiras. No entanto, as situações diferem de uma faculdade para outra. Algumas escolas não tem trote algum. Há escolas em que o trote é uma relação aluno-aluno. Esta situação, que é a mais leve, já pode ser perigosa e, às vezes, produz vítimas. No entanto, em algumas escolas, o trote é institucional. Nestes casos, existe um grupo de pessoas, composto por alunos de graduação, ex-alunos, docentes, dirigentes, que sustentam o trote. Nestas escolas, a atividade é recorrente e grave, produzindo regularmente vítimas.

Estes grupos trotistas institucionalizados utilizam o trote para selecionar e treinar seus adeptos. Para testar os novos alunos que queiram pertencer a estes grupos, práticas bastante ofensivas e verdadeiras torturas são empregadas. O objetivo é verificar se mesmo contrariada, mesmo machucada, a pessoa continua em silêncio e a obedecer. Se o aluno do primeiro ano permanece obediente e em silêncio, no segundo ano ele será obrigado a aplicar trotes, a torturar outras pessoas. E com a continuidade deste processo o novo aluno acaba tornando-se confiável para o grupo trotista. Em outras palavras, o trote é uma porta aberta para a corrupção.

A universidade tem sido conivente, deixando de cumprir seu papel educacional

P. Que características especificas tem o trote no Brasil? Se baseiam em questões de raça, condição social, gênero... ou trata-se de uma questão genérica de demonstração de poder, venha de onde venha?

R. No trote, manifestam-se muitos preconceitos. Por exemplo, os apelidos fazem referência à origem étnica, opção religiosa, opção sexual, aparência física, condição de gênero, condição social, cor da pele, etc. Alguém de pele escura pode receber o apelido de Branca de Neve, alguém muito alto pode ser apelidado de Bambu ou Girafa. O ritual coloca o aluno de primeiro ano na condição do mendigo, do despossuído, manifestando um preconceito de classe. O aluno do primeiro ano, que é considerado um “bicho”, é colocado na condição de pessoas pobres e despossuídas.

P. Os trotes nas universidades brasileiras são um reflexo da sociedade?

R. O trote é um microcosmo da sociedade. As violências, injustiças, preconceitos e desigualdades presentes apresentam-se de modo concentrado nos procedimentos do trote. No caso dos países com uma história de violência colonial, é muito comum que parte dos perpetradores desta violência tenham passado por trotes nas escolas civis e militares de seus países.

P. As denuncias da Faculdade de Medicina da USP apontam estupros e diversos abusos sexuais, acusações muito além dos trotes. O senhor acha que isso é uma evolução dos chamados trotes tradicionais, ou é uma prática comum das Universidades no Brasil?

R. Os estupros e abusos sexuais são recorrentes em muitos campi ao redor do mundo. Não são apenas os praticantes do trote que cometem este tipos de violência. No entanto, os grupos trotistas cultivam um tipo de masculinidade exacerbada que, com uma frequência espantosa, colocam as mulheres em risco. Outro problema é que o grupo trotista está acostumado à impunidade e um grupo acima da lei é um perigo para todos, inclusive e talvez principalmente para as mulheres.

P. O que o senhor conclui depois de 14 anos de pesquisa?

Manifestam-se muitos preconceitos: os apelidos fazem referência à origem étnica, opção religiosa, sexual, aparência física, condição de gênero, condição social, cor da pele...

R. Trote é tortura e, portanto, ele é um procedimento bárbaro, desumano. Até aqui, a universidade brasileira tem sido conivente, deixando de cumprir seu papel educacional. Há uma exigência crescente por respeito à diversidade, igualdade e tolerância. Por todas as mazelas já causadas pelo trote, tornou-se necessário um grande basta. Não deve existir nenhum tipo de trote. Não se pode separar brincadeira de violência e, por isto, todo trote deve ser banido. A universidade enquanto instituição precisa afastar-se completamente do trote. Ela não deve permitir o uso de seus espaços, não deve dar dinheiro, transporte, nem outros recursos, aos grupos trotistas. Ela deve abolir de seu vocabulário as palavras do trote (calouro, veterano, bicho, bixo...) que não venham acompanhadas da necessária crítica. A universidade deve pressionar colégios e cursinhos para que não utilizem imagens do trote em suas publicidades e a própria universidade também não pode se promover utilizando a imagem do trote, que deve ser visto como tortura e não como comemoração. Enfim, está tudo fora de lugar e, por isto, é preciso uma transformação cultural profunda da universidade brasileira em direção a um efetivo respeito às pessoas e aos seus direitos.

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