Dois anos depois: afinal, era por vinte centavos?
Prefácio para nova edição de 'Vinte Centavos: A Luta Contra Aumento' discute origens e consequências dos protestos de junho de 2013 e o papel da mídia na pauta dos atos
Escrevemos a narrativa que constitui o cerne deste livro durante o mês de julho de 2013, poucas semanas após o auge dos protestos de junho. Embora, à época, muitos tenham julgado que não teríamos “distanciamento histórico” para um balanço fundamentado, continuo achando, dois anos depois, que fizemos um bom trabalho e que muitas das informações e percepções que recuperamos e registramos, no calor dos acontecimentos, dificilmente seriam acessíveis muito tempo depois.
A nossa principal motivação para escrever o livro não era apenas analisar de uma perspectiva política a luta contra o aumento, mas intervir e disputar, desde o princípio, a historiografia sobre “as manifestações”.
Como mostramos, houve uma radical reorientação do discurso dos meios de comunicação de massa que, no meio do processo, buscaram ressignificar a luta contra o aumento, apoiando a ampliação da pauta das manifestações e operando uma separação entre manifestantes pacíficos, imbuídos de valores cívicos, e vândalos oportunistas com motivação política.
Embora essa leitura contrariasse tudo o que os próprios meios de comunicação tinham dito até então, essa versão prevaleceu, não apenas no discurso jornalístico como no discurso acadêmico e político.
A versão completa desta narrativa é mais ou menos a seguinte. No começo de junho de 2013, estudantes tomaram as ruas de todo o país protestando contra o aumento das passagens. Após uma abusiva ação policial que atacou manifestantes e jornalistas na noite do dia 13 de junho, o Brasil se levantou. À medida que as imagens da brutalidade da polícia se difundiam pelas redes sociais, a indignação contra o covarde ataque despertou reivindicações sociais há muito tempo represadas – contra a corrupção da classe política e contra a má qualidade dos serviços públicos. Foi essa reivindicação difusa que explodiu em manifestações massivas que não tinham uma orientação ou um objetivo preciso, embora em algumas variantes dessa narrativa, ela seja uma resposta aos escândalos de corrupção do governo do PT.
O balanço sugerido por essa leitura é que os protestos de junho mostraram que o povo quer que as coisas sejam diferentes, mas ele não sabe exatamente o que mudar, nem como mudar. Junho teria sido um grito difuso de indignação – e um grito inócuo.
A narrativa que escrevemos fornece muito elementos que contrariam essa leitura forjada pelos meios de comunicação ainda durante os protestos.
Em primeiro lugar, como o prefácio escrito por Marcelo Pomar argumenta, os protestos de junho de 2013 foram precedidos de dez anos de mobilizações juvenis e populares contra o aumento das passagens de ônibus. Muitos destes protestos se tornaram grandes revoltas populares, da mesma dimensão dos protestos de junho, mas circunscritos às cidades onde ocorreram.
Assim, uma das particularidades de junho de 2013 é que os protestos aconteceram então em São Paulo e no Rio de Janeiro, onde se concentra o poder político, o poder econômico e a atenção dos meios de comunicação. Isso permitiu não apenas que os protestos se nacionalizassem, como que fossem devidamente incorporados como relevantes acontecimentos históricos.
Em uma das leituras, o balanço sugerido é que junho teria sido um grito difuso de indignação – e um grito inócuo.
Para se ter uma ideia, até 2013, a universidade praticamente desprezou as manifestações de jovens contra o aumento das passagens, embora tenham acontecido dezenas delas em importantes capitais do país e de maneira bastante semelhante. Apesar da relevante regularidade sociológica, apenas duas dissertações de mestrado e uma tese de doutorado sobre o tema tinham sido produzidas até aquele momento. Os meios de comunicação chamados de “nacionais” praticamente não cobriram e, quando o fizeram, não deram qualquer destaque aos protestos, apesar de eles terem acontecido em capitais importantes como Salvador, Florianópolis, Vitória e o Distrito Federal. Finalmente, também os partidos políticos não incorporaram nos seus programas a demanda por redução das tarifas de transporte.
Além desse desconhecimento dos precedentes históricos dos protestos de junho, uma outra circunstância relativa aos analistas na cidade de São Paulo ajudou a fortalecer a tese. A maior parte desses analistas não acompanhou as manifestações desde o início, só percebendo o seu significado histórico no dia 17 de junho e fazendo observações diretas apenas no dia 20. O protesto do dia 20 em São Paulo, no entanto, foi sui generis: a revogação do aumento já havia sido concedida pelo governador e pelo prefeito, e o MPL já havia anunciado que suspenderia as manifestações (o que aconteceu, houve apenas pequenas mobilizações inerciais na semana seguinte); o PT, muito insensatamente, convocou seus militantes para a manifestação, a despeito do forte sentimento anti-institucional e antipartidário que vinha sendo expresso e a despeito do fato de que um dos principais alvos dos protestos, o prefeito Fernando Haddad, era do próprio partido; a extrema direita, demonstrando agudo discernimento tático, apareceu pela primeira vez nas manifestações de maneira organizada, mas disfarçada, insuflando a população contra o PT e buscando converter o sentimento anti-partidário num sentimento anti-comunista e o espírito de cuidado com o bem público num nacionalismo chauvinista.
Essa conjunção de fatores resultou, nesse dia, num grande, confuso e um tanto violento confronto entre esquerda e direita que não havia aparecido nos protestos dos dias 6, 7, 11, 13, 17 ou 18. Mas quem observou somente esse dia de protesto e generalizou a partir dessa única experiência formou o conceito de que os protestos de junho foram dominados pela direita antipetista e que não tinham nenhuma relação com o aumento das passagens.
Em 20 de junho de 2013, a extrema direita, demonstrando agudo discernimento tático, apareceu pela primeira vez nas manifestações de maneira organizada
Na narrativa estabelecida pelos meios de comunicação, os protestos só ganharam a opinião pública após a violência excessiva da polícia no dia 13 de junho e só se nacionalizaram e se massificaram quando incorporaram em primeiro plano outras pautas como o combate à corrupção. O aumento das passagens teria sido apenas uma faísca – uma faísca acidental.
No livro, reunimos elementos concretos que contrariam essa explicação. No dia 13 de junho, antes da violência policial que afetou manifestantes durante a noite, uma pesquisa de opinião conduzida pelo Datafolha indicou que dois terços dos paulistanos consideravam o aumento das passagens excessivo e mais da metade da população da cidade (55%) apoiava os protestos que vinham acontecendo desde o dia 6. Esse grande apoio aos protestos, capturado pela pesquisa, precedeu a divulgação das cenas de violência policial contra manifestantes e jornalistas que chocaram a opinião pública no dia seguinte.
É importante notar que antes da grande repressão do dia 13 de junho, os jornais televisivos e os editoriais dos dois principais jornais de São Paulo pediram uma ação rigorosa da polícia contra a manifestação. Assim, quando os números do Datafolha foram processados e as imagens da brutalidade policial difundidas, os meios de comunicação perceberam que haviam solicitado e autorizado uma agressão vil e covarde contra uma mobilização social altamente popular.
E não era apenas naquele dia: durante toda a luta contra o aumento, a cobertura da grande imprensa – os jornais, as revistas e as redes de TV – foi enviesada, com poucas exceções. Essa percepção do grave equívoco que tinham cometido pode ter motivado a virada discursiva que observamos nos meios de comunicação nos dias 15 e 16 de junho.
Nesse final de semana, os veículos que haviam unanimemente criticado e desqualificado os manifestantes reviram sua postura e agiram ativamente apoiando a difusão da pauta dos protestos. As autocríticas do apresentador José Luiz Datena e do comentarista Arnaldo Jabor são a ilustração caricata do processo.
As manifestações incorporaram outras pautas, mas a luta contra o aumento das tarifas permaneceu a reivindicação principal.
Como analisamos no livro, embora em nenhuma das manifestações até aquela do dia 13 de junho tivesse aparecido qualquer outra reivindicação que não a oposição ao aumento das passagens, as revistas, os comentaristas de TV e os jornais do fim de semana dos dias 15 e 16 afirmaram que a pauta das manifestações tinha sido ampliada.
Eles foram antecipados por ativistas anticorrupção que, por meio das redes sociais, tinham visto nos protestos do MPL uma inspiração para sua própria luta e proposto (apenas nas redes e sem sucesso) que a pauta se ampliasse. Embora nossa pesquisa não tenha conseguido estabelecer se houve intencionalidade e coordenação na ação dos meios de comunicação ou se eles apenas intuitivamente captaram um fenômeno marginal, o resultado foi a amplificação de um sentimento minoritário, que chamamos de “legitimidade amplificada”.
Assim, na semana do dia 17 de junho, os protestos contra o aumento das passagens, que já estavam acontecendo em várias capitais, se ampliaram ainda mais e mobilizaram milhões de pessoas em todo o país. Outras pautas como o rechaço à classe política e à corrupção, críticas à Copa do mundo e a demanda por melhores serviços públicos se somaram à reivindicação por redução das tarifas de transporte, mas sem tirar dela a dominância.
Se houve uma ação deliberada para inchar ainda mais as manifestações e mudar o seu foco, a ação foi mal sucedida. As manifestações cresceram e incorporaram outras pautas, mas a luta contra o aumento das tarifas permaneceu a reivindicação principal.
A única pesquisa nacional realizada durante o auge dos protestos, nos dias 19 e 20 de junho, pelo Ibope, indicou o preço das passagens de ônibus como a principal causa das manifestações, com larga margem à frente das outras demandas. Uma pesquisa do Datafolha conduzida entre os manifestantes de São Paulo, no dia 17 de junho, deu o mesmo resultado.
Foi essa clareza, aliás, que levou governantes de todo o país a responder aos protestos revogando o aumento das tarifas de transporte, beneficiando assim 70% dos brasileiros que vivem nas grandes e médias cidades. Uma vitória concreta, de grande magnitude e que foi conseguida por meio da ação direta da população em duas intensas semanas de protestos de rua.
Apesar dessas evidências, a força dos meios de comunicação e a desatenção dos analistas para o início dos protestos e os seus antecedentes permitiu que se formasse depois uma espécie de consenso esclarecido em torno do papel acidental da demanda pela redução do custo das passagens nas manifestações de junho de 2013. É contra essa interpretação que este livro foi escrito.
Pablo Ortellado é ativista e professor na Escola de Artes, Ciências e Humanidades da USP. Esse texto é o prefácio da nova edição do livro 'Vinte Centavos: A Luta Contra o Aumento' (Veneta).
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