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O maior mapa do câncer revela diferenças enormes entre países

Um macroestudo analisa a sobrevivência de 25 milhões de pacientes em 67 países Sobrevida dos cânceres de mama e colorretal melhorou no Brasil, Colômbia e Equador

Um acelerador linear para o tratamento de câncer.
Um acelerador linear para o tratamento de câncer.Universidad de Stanford

O maior mapa mundial da sobrevivência ao câncer volta a mostrar que, quando se trata de saúde pública, o código postal é mais importante que o código genético. Elaborado por 500 pesquisadores com dados de 25 milhões de pacientes em 67 países, o trabalho demonstra que o câncer é muito mais letal em algumas regiões que em outras. Por exemplo, a sobrevida de cinco anos depois do câncer infantil mais comum, a leucemia linfoblástica aguda, chega a 90% no Canadá, Áustria, Bélgica, Alemanha e Noruega, mas oscila entre 16% e 60% em países como Jordânia, Tunísia, Indonésia e Mongólia.

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Intitulado Concord 2, o estudo afirma que a maior parte das diferenças observadas “provavelmente pode ser atribuída à desigualdade no acesso aos serviços de diagnóstico e tratamento ótimos”. Os autores recordam que a presença de aceleradores lineares – máquinas usadas para produzir raios-X capazes de destruir as células cancerosas de um paciente – varia muito em diferentes países. Na Europa geralmente há pelo menos uma máquina para cada 500.000 habitantes. Na Índia, existe uma para entre dois milhões e cinco milhões de pessoas. Em países como Quênia e Tanzânia, apenas um aparelho para mais de cinco milhões de habitantes. E em mais de 30 países da África e Ásia não há nenhum.

O programa Concord é uma colaboração científica internacional que visa influir com dados sobre as políticas nacional de controle do câncer. Sua primeira avaliação, publicada em 2008, divulgou cifras sobre quatro tipos de câncer em 31 países e trouxe à tona grandes diferenças na sobrevida de brancos e negros nos Estados Unidos. Este segundo trabalho, publicado na revista médica The Lancet, traz dados sobre dez tipos de câncer nos países onde vivem dois terços da população mundial.

O estudo cobre dados do período de 1995-2009. Durante esse tempo, a sobrevida de cinco anos após o diagnóstico de um câncer de pulmão melhorou em países como Israel (passando de 18% para 24%) e no Japão (de 23% para 30%), mas continua a ser “muito baixo” em algumas partes da Europa, como o Reino Unido, onde chega a apenas 10%. Na Espanha, é de mais ou menos 13%.

A análise constata que, entre os dez tipos de câncer estudados, os de fígado e de pulmão são os de pior prognóstico, com sobrevida de cinco anos não chegando a 20% na maioria dos países, tanto ricos quanto pobres. Em Gâmbia, a sobrevivência ao câncer de fígado chega a apenas 5%. Quanto ao câncer de estômago, a sobrevivência é maior no sul e leste da Ásia, chegando a 54% no Japão e 58% na Coreia do Sul. Na Espanha, é de 27%. Esses dados sugerem que “há lições importantes a ser aprendidas com esses países”, com ênfase sobre o diagnóstico precoce, segundo a revista The Lancet.

Entre os dez tipos de câncer estudados, os de fígado e pulmão são os de pior prognóstico, com índice de sobrevivência de menos de 20%

“Nossas descobertas mostram que o câncer é muito mais letal em alguns países que em outros. No século XXI não deveria existir uma diferença tão grande de sobrevida”, diz a epidemiologista italiana Claudia Allemani, professora da Escola de Higiene e Medicina Tropical de Londres e autora principal do estudo.

“Esses estudos de avaliação são fundamentais, porque refletem em grande medida o funcionamento do sistema de saúde”, opina Miquel Porta, catedrático de Saúde Pública no Instituto de Pesquisas Médicas do Hospital del Mar, em Barcelona. Depende da detecção e do tratamento precoce o câncer ser ou não uma sentença de morte.

“Se o atendimento primário e a coordenação entre ele e os hospitais não funciona bem, o diagnóstico e o início do tratamento sofrem atrasos inaceitáveis. Nos países ocidentais essas demoras continuam a ser inaceitavelmente longas. Isso é muito mais importante que a aplicação de tratamentos caríssimos, que em muitos casos apenas prolongam a vida dos pacientes”, diz o médico.

Porta, que não participou do Concord 2, lembra que o registro de tumores de seu hospital é um dos mais completos da Espanha. Em um de seus estudos, com 2.000 mulheres com câncer de mama, ele mostrou que esses tumores “são diagnosticados em estados muito mais precoces do que era feito 20 anos atrás e que a sobrevivência melhorou de maneira espetacular.” A sobrevida de cinco anos saltou de 73% no período de 1992-1995 para 86% em 2001-2005. “Na Espanha, essas conquistas no setor de saúde estão sendo perdidas pelas políticas ultraliberais: vemos como as demoras voltam a aumentar, por exemplo o tempo passado entre o diagnóstico e o início do tratamento”, diz Porta, ex-presidente da Federação Europeia de Epidemiologia.

No século XXI não deveria existir uma diferença tão grande de sobrevida”, diz a autora principal do estudo

Os dados do Concord 2 não sustentam sua tese, já que chegam apenas até 2009, antes do início dos cortes nos gastos com a saúde pública. “Ainda não há dados mostrando que as coisas estejam piorando na Espanha, embora estejamos detectando uma demora no acesso a exames diagnósticos”, opina Josep María Borràs, coordenador do grupo de epidemiologia da Rede Temática de Pesquisa Cooperativa de Câncer. Com os dados de 2009, “a Espanha está acima da média europeia, mas tem margem para melhorar em relação a outros países”, disse Borràs.

Esse epidemiologista ressalta as diferenças entre países ricos e pobres e aplaude “o bom trabalho que alguns países da América Latina estão fazendo com os recursos disponíveis”. A nova análise mostra que a sobrevida dos cânceres de mama e colorretal melhorou em todos os países desenvolvidos e também na América do Sul, sobretudo no Brasil, Colômbia e Equador. Nesse último país, 68% dos pacientes com câncer de cólon continuam vivos cinco anos após o diagnóstico, mais que os 59% da Espanha, segundo dados do estudo.

Quanto ao câncer de mama, o Brasil alcança índice de sobrevivência de 87%; os EUA, de quase 89%; a Espanha, de 84%, e a Mongólia, o pior nessa classificação, de apenas 56%.

O Concord 2 deixa clara a importâncias das políticas de saúde. Na Lituânia, a sobrevivência ao câncer de próstata passou de 52% em 1995 para 92% em 2009, graças ao maior acesso à saúde e à implantação, em 2000, de exames de diagnóstico precoce desse tipo de câncer.

Os autores principais do estudo, entre os quais o epidemiologista espanhol Rafael Marcos Gragera, da Universidade de Girona, concluem lançando um chamado à Organização Mundial de Saúde e à ONU para que reduzam “as crescentes dificuldades legais e de procedimento” para o acesso aos dados das fichas médicas de pacientes de câncer. Eles citam, por exemplo, as novas leis de proteção de dados que a UE está redigindo e que “tornariam ilegal ou impossível registrar os dados de câncer ou realizar a maior parte das pesquisas no campo da saúde pública em 28 países europeus”.

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