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Somos escravos felizes?

A Copa, os possíveis novos protestos e a ida às urnas serão importantes para medir o grau de vontade de quererem ser livres ou de preferirem continuar perpetuando nossa própria escravidão

Juan Arias

Sempre me impressionou, desde que estudava os clássicos, a afirmação do historiador e político Tucídides, que há 2.450 anos sustentava que o sucesso dos tiranos reside na felicidade dos escravos com sua própria escravidão, afirmação essa que foi lembrada outro dia pela escritora Rosiska Darcy de Oliveira em sua coluna em O Globo.

Dois milênios e meio mais tarde, a dura e irônica frase de Tucídides continua atual em nosso mundo globalizado, embora com perfis mais modernos e sutis. Hoje, de alguma forma, todos somos de alguma maneira escravos, embora não o admitamos, e até dá a impressão, às vezes, de que somos igualmente felizes. E muitos políticos e governantes continuam exercendo formas de tirania, embora hoje venham revestidas com roupagens de democracia.

Como naquela época, também hoje o sucesso dos que nos governam é uma razão direta do grau de satisfação que demonstramos com a nossa própria escravidão. E seu fracasso será também proporcional à nossa capacidade de nos sentirmos infelizes com as correntes que eles nos impõem e que aceitamos.

Quando, em junho passado, o Brasil se lançou às ruas para reivindicar seus direitos, foi como se de repente as pessoas tivessem se dado conta de que, sem perceberem, estavam amarradas a uma sutil escravidão. E os políticos e governantes se assustaram pelo fato de os cidadãos terem deixado de serem felizes com suas correntes. E tentaram tranquilizá-los prometendo-lhes que os libertariam.

Os brasileiros perceberam, de repente, de que eram de alguma forma escravos quando precisavam usar meios de transporte público que poderiam servir também para o gado; ou os hospitais, ou as escolas. Perceberam que se é escravo politicamente, inclusive na democracia, quando é permitido apenas exercer o direito de voto a cada quatro anos, sem poder participar da gestão da vida pública e sem poder contestar os privilégios escandalosos com que se presenteiam os que decidem sobre nossas vidas. Os políticos decidem livremente, por exemplo, seus fabulosos salários. Por que os professores, por exemplo, não poderiam então fazer a mesma coisa?

Perceberam que se é escravo quando você não pode sair com tranquilidade à rua sem saber se será assaltado, violentado ou sequestrado. E, se você for pobre e negro ou de cor, se poderá acabar barbaramente torturado e morto por policiais corruptos, como um Amarildo qualquer. Ou, se você estiver na prisão, se acabará decapitado. Há muitas formas de ser escravo. E a pior das escravidões é o não saber que se é escravo. Às vezes, os escravos de verdade lutam por sair da sua situação, enquanto os que nos sentimos livres podemos ser mais escravos do que eles, sem sabermos disso. Pode-se ser escravo pela força e escravo por vontade própria. Pode-se ser interiormente livre vivendo na escravidão forçada, e pode-se ser escravo por dentro enquanto acreditamos ser livres.

Hoje, no Brasil, há aqueles que ainda são forçados a viver em condições de trabalho escravo, e quando são descobertos recuperam sua liberdade.

Mas há também os escravos voluntários. Os que não precisam de um feitor que lhes coloque as correntes nos pés; eles mesmos as colocam.

Somos cada vez mais escravos, por exemplo, de um consumismo desenfreado, fomentado não só por nossa natureza, que nos impele a possuir, mas também pela mão invisível do poder que usa todos os modernos instrumentos da publicidade para fazer com que nos sintamos escravos, insignificantes, perdedores e marginalizados se não conseguimos comprar o último modelo de tudo. Somos, afinal, escravos de nossa própria vaidade. Há mulheres da classe média que se sentem desconcertadas vendo que sua empregada pode usar o mesmo perfume que ela ou o mesmo modelo de celular ou a mesma geladeira. Já não se sentem exclusivas em seus objetos de consumo.

Somos escravos da vertigem das tecnologias digitais e nos sentimos felizes por sê-los, a ponto de que adoeceríamos se nos impusessem a abstinência das mesmas. Somos os modernos escravos que amamos nossas próprias correntes. E, como na síndrome de Estocolmo, chegamos a nos apaixonar pelos que nos escravizam, como, por exemplo, nossos políticos corruptos. Assim se explica que os políticos com menos escrúpulos, os mais desavergonhados, os que mais nos escandalizam, os que roubam com mais descaro, e os que são muitas vezes os mais medíocres culturalmente, acabem sendo os mais votados por nós em nossas urnas.

Sentimos mais fascinação pelo político que soube se impor e brilhar graças às suas formas corruptas de atuar e abusar de seu poder do que pelos que se esforçam em impor a ética na política.

É como as crianças que acabam admirando mais o colega violento, arruaceiro e malandro do que o gentil e generoso, mais o que bate do que o que apanha injustamente, mais o que nos subjuga do que o que nos acolhe.

Qualquer tipo de escravidão, livremente buscada ou imposta pelo poder, é uma arma nas mãos dos que nos governam, sobretudo se somos nós mesmos os que aceitamos livremente essas correntes e até nos sentimos confortáveis com elas. A liberdade às vezes nos dá mais medo do que a própria escravidão.

O Brasil vive um momento especial neste 2014, que se resume em três palavras: Copa do Mundo; possíveis novas manifestações de protesto e a ida às urnas.

Três momentos que serão importantes para medir o grau de vontade de quererem ser livres ou de preferirem continuar perpetuando uma parte da nossa própria escravidão.

Com a Copa do Mundo, será possível analisar a capacidade governamental de realizar, perante os olhos do mundo, um acontecimento dessa envergadura com resultados positivos que nos obriguem a nos orgulhar ou, pelo contrário, que demonstrem que não estávamos preparados nem para fazer gastos públicos milionários que não deixam uma marca positiva duradoura nem para suportar a presença de milhões de estrangeiros com nossas infraestruturas precárias (leia-se, por exemplo, aeroportos, estradas, hotéis, etc.) que desafinam diante dos modernismos e dos estádios às vezes inúteis, catedrais efêmeras da vaidade.

As possíveis novas manifestações de protesto, que desta vez poderiam se realizar sem a presença de grupos violentos, já que as forças da ordem agora estarão preparadas para neutralizá-las, serão um teste que revelará se era verdadeiro aquele despertar de junho passado, em que centenas de milhares de cidadãos revelaram que não queriam continuar sendo escravos da má gestão da vida pública e desejavam poder gozar dos benefícios da modernidade.

Ou se preferem continuar vivendo com as mesmas correntes de sempre – já que as promessas dos políticos, então assustados, ficaram quase todas na gaveta –, sem vontade para continuar reivindicando novos espaços de bem estar para todos, de liberdade cidadã e de uma maior participação na vida pública.

E as urnas de outubro serão o terceiro teste que revelará o grau de escravidão que se deseja perpetuar ou a vontade e capacidade de querer se libertar de certas incongruências políticas, como são nossos protestos contra políticos corruptos para depois continuar votando neles porque, no fundo, nos fascinam mais as sombras do que a luz, e esperamos mais dos violentos e prevaricadores, que tudo prometem embora depois nada ofereçam, do que dos honestos que oferecem menos, mas dos quais caberia esperar uma maior esperança de ressurreição e de liberdade.

Somos assim às vezes: escravos felizes.

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