Opinião

Reformar a política sem criminalizar

Na fricção com os movimentos de renovação, partidos se veem deslegitimados, fomentando sentimentos anti-establishment que elegem populistas e aventureiros

A deputada brasileira Tabata Amaral, em São PauloFERNANDO BIZERRA (EFE)


A recente votação da reforma da Previdência fez explodir a tensão entre os partidos políticos e parlamentares ligados a movimentos de renovação da política, como Tábata Amaral (PDT) e Felipe Rigoni (PSB), acusados de indisciplina por não seguirem a orientação de suas lideranças. Até que ponto grupos como RenovaBR, Agora e Acredito contribuem para a renovação da política brasileira? Sem entrar em uma discussão legal ou normativa sobre qual fonte de fidelidade deveria prevalecer (do partido ou do movimento), as escaramuças recentes demandam uma reflexão sobre o funcionamento atual dos partidos e as estratégias para aperfeiçoar a democracia representativa no Brasil.

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Nesse sentido, há vários pontos positivos na agenda desses movimentos. Talvez o principal seja a tentativa de atrair para a política uma juventude com bom nível de educação formal, fugindo da tentação fácil de demonizar a atividade política institucional (disputar eleições, ocupar cargos etc.). Também é saudável criticar o distanciamento dos partidos em relação à sociedade e sua incapacidade no desempenho de funções de representação (canalizar e vocalizar interesses), cada vez mais preteridas frente às funções procedimentais (como organizar o governo e o processo legislativo ).

Exigir maiores níveis de democracia interna e arejamento das estruturas partidárias é outra demanda pertinente. Em pesquisas comparadas sobre o tema, o Brasil ocupa uma das últimas posições em termos de democracia intrapartidária. Grandes ou pequenas, as legendas no país são dominadas por oligarquias altamente estáveis, compostas principalmente por parlamentares no exercício do mandato, e com poucos canais para participação dos filiados ou simpatizantes. Contrariando a lei de Tiririca, o que era ruim ficou ainda pior após a promulgação da Lei 13.831 em maio de 2019, permitindo uma vigência de até oito anos para as comissões provisórias dos partidos. Enquanto os membros dos diretórios municipais, estaduais e nacionais são eleitos nas respectivas convenções (também estas dominadas pelos parlamentares), para em seguida escolher os integrantes das comissões executivas, as comissões provisórias são livremente nomeadas pelos dirigentes do nível hierárquico superior.

O que foi concebido na legislação como mecanismo temporário para permitir o estabelecimento inicial do partido em determinada localidade (até realizar a convenção), na prática se converteu em instrumento de gestão cotidiana e resolução de conflitos internos, já que a comissão provisória resulta, muitas vezes, da destituição dos antigos dirigentes locais ou estaduais de seus cargos.

Por outro lado, há outras demandas dos movimentos que indicam certo ethos de criminalização dos partidos, além de demonstrar desconhecimento sobre como funcionam as democracias atuais. Deixando de lado o disparate da proposta de candidaturas “avulsas” (desvinculadas de partidos) em um sistema de eleição proporcional, o clamor geral por maiores níveis de transparência das legendas parece pouco razoável, por exemplo. Como fruto de regulação já bastante detalhista e do trabalho competente dos órgãos técnicos da Justiça Eleitoral (TSE à frente), os partidos brasileiros são transparentes em um nível que surpreende os colegas estrangeiros que, como eu, estudam organizações partidárias pelo mundo.

A partir da página inicial do TSE na internet, são quatro cliques para acessarmos os quantitativos de eleitores filiados a todos os partidos, em nível nacional, estadual ou municipal; ou três/quatro mexidas no dedo para consultar os valores do fundo partidário distribuídos aos partidos desde 1994; ou cinco cliques para chegarmos às prestações de contas entregues pelos diretórios nacionais desde 2007, contendo muito mais dados do que os pesquisadores da área conseguem analisar (balanços, demonstrativos, cópias de notas fiscais etc.); e número semelhante para chegar às relações nominais de filiados de todos os partidos, organizadas por estado da federação e contendo seção eleitoral do indivíduo, datas de filiação e desfiliação etc. Sugiro ao leitor que tente encontrar na internet informações correlatas sobre o centenário Partido Conservador Britânico, ou do PSOE na Espanha, ou dos principais partidos italianos (isso sem falar dos partidos nanicos que existem em qualquer democracia). Ou que tente achar informações sobre dirigentes e contabilidade de universidades e autarquias públicas brasileiras.

Não faz sentido, assim, elaborar um “ranking de transparência” ― como o recém-divulgado pelo Movimento Transparência Partidária ― que ignora o trabalho do TSE ao longo de décadas e demanda que cada partido divulgue separadamente, em suas páginas na Internet, informações sobre dirigentes, membros e contabilidade. Se o objetivo final é facilitar o acesso à informação e o controle do cidadão sobre os partidos, é muito mais eficaz e democrático que tais informações sejam centralizadas, uniformizadas e disponibilizadas pelo órgão fiscalizador legítimo (o TSE), do que dispersas e despadronizadas nas dezenas de páginas dos partidos.

Como consequência desse e outros equívocos, um projeto de iniciativa popular apoiado por vários desses movimentos (e disponível em plataforma de petições na Internet) traz propostas que ferem a autonomia dos partidos e ameaçam sua própria viabilidade. Uma delas defende o preenchimento de parte das vagas nas instâncias partidárias por meio de sorteios entre os filiados. Para além de criar rotina da ineficiência – inclusive na gestão de receitas advindas do Estado, contrariando um dos princípios da administração de recursos públicos, – cabe perguntar: o bingo entre filiados é mais democrático do que a eleição pelas bases? Publicação diariamente atualizada das receitas e despesas do partido em sua página na internet: alguma empresa listada na Bolsa consegue fazer isso? Divulgação na página do partido da lista nominal de filiados, também atualizada diariamente, contendo o CPF de todos eles: os indivíduos que aderem a um partido devem ser punidos com a perda da privacidade?

Em comum, as propostas que visam determinar rigidamente a dinâmica interna das agremiações parecem querer ressuscitar a famigerada Lei Orgânica dos Partidos Políticos (Lei 5.682 de 1971), um entulho autoritário que regulava nos mínimos detalhes o funcionamento das legendas (estipulando, por exemplo, datas e horários de início e fim das convenções, ou a composição de cargos de cada comissão executiva). A implantação da nova lei dos partidos em 1995 (Lei 9.096) representou um ganho considerável para a democracia brasileira, ao derrubar a LOPP e conceder autonomia organizativa às legendas. Os partidos possuem diferentes trajetórias organizacionais, culturas internas, e bases ideológicas; essas diferenças devem poder se expressar no modelo e mecanismos adotados internamente. Faz algum sentido que PCdoB e NOVO, por exemplo, tenham exatamente a mesma configuração interna?

Não há dúvidas de que deve existir transparência, e que os mecanismos de controle sobre os partidos devem ser rígidos, pois eles são majoritariamente financiados por recursos públicos – e deve haver prestação de contas sobre cada centavo movimentado pelas legendas. No entanto, os partidos têm sua autonomia garantida pela Constituição como pessoas jurídicas de direito privado. As legendas em outros países também são majoritariamente financiadas com recursos públicos – essa é a tendência na maioria das democracias contemporâneas, – o que não leva a questionamentos sobre a autonomia e a liberdade de organização dessas entidades.

Se não demoniza a política, parte dos movimentos parece ter uma visão de criminalização e questionamento da legitimidade dos partidos enquanto atores de representação de interesses. Melhor do que enrijecer o funcionamento dos partidos seria incluir na legislação alguns incentivos institucionais e financeiros (bônus nos recursos de campanha, por exemplo) para os partidos que consigam aumentar sua interlocução com a sociedade, renovar e incluir minorias em seus quadros dirigentes, ou atrair grandes quantidades de pequenos doadores individuais. Em ambientes democráticos, uma abordagem institucional do tipo carrot and stick é melhor para induzir comportamentos desejáveis do que um emaranhado de regras que farão os partidos apenas formalmente iguais, sufocando a diversidade que existe (e deve existir) entre esses atores. Isso não significa a inércia frente a medidas regressivas tomadas pelos parlamentares e dirigentes partidários.

Neste momento, cabe contestar o absurdo prazo de oito anos para a vigência das comissões provisórias, conter retrocessos em relação à implantação progressiva da cláusula de barreira, além de ficar atento frente a investidas que visam dificultar a atuação dos órgãos de controle. Esse foi o caso de uma regra aprovada pelo Congresso em setembro (na minirreforma eleitoral) que liberava os partidos para adotar qualquer sistema de contabilidade e prestação de contas, fugindo do Sistema de Prestação de Contas Anual mantido pelo TSE. Em parte graças à pressão desses mesmos movimentos, e seguindo recomendação da AGU, a Presidência vetou esse trecho do dispositivo (Lei 13.877). Sem a padronização implantada a duras penas nas últimas décadas, a fiscalização das contas partidárias se tornaria inviável.

Como já se viu em diversas praças, deslegitimar os partidos é o melhor caminho para fomentar sentimentos anti-establishment e eleger populistas e aventureiros. Por outro lado, medidas que visam aumentar a qualidade da democracia em outros países têm geralmente passado pelo fortalecimento de atores independentes de regulação centralizada das eleições e dos partidos. No Brasil, esse papel cabe à Justiça Eleitoral. Para o “controle social” dos partidos, já existe um instrumento à disposição dos cidadãos: o voto.

Pedro Floriano Ribeiro é professor de ciência política na Universidade Federal de São Carlos. Ocupou a Cátedra Celso Furtado na Universidade de Cambridge (Inglaterra) e foi Fulbright Visiting Professor no Kellogg Institute, da Universidade de Notre Dame (EUA).