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ENTREVISTA BORIS FAUSTO / HISTORIADOR

“No PT existe uma pretensão hegemônica muito forte”

O historiador Boris Fausto, autor da 'Historia do Brasil', repassa a atual encruzilhada brasileira diante um ano crucial para o país

O historiador Boris Fausto.
O historiador Boris Fausto.BOSCO MARTÍN

“O Brasil continua sendo uma interrogação”, diz em tom bem humorado o historiador Boris Fausto (São Paulo, 1930), após toda uma vida dedicada a explicar este país, que, como ele adverte, “não é um país para principiantes”. Conhecido popularmente pelas obras História do Brasil, A Revolução de 1930 e a biografia Getúlio Vargas: O poder e o sorriso, o professor conversou com o EL PAÍS nesta tarde de verão na sua casa no bairro do Butantã, na sua cidade natal, e repassou a atual encruzilhada brasileira.

O Brasil democrático

O país avançou inegavelmente. O Brasil tem uma tradição liberal desde sua independência, em 1822, mas não uma marcadamente democrática. Sob esse aspecto, ocorreu uma afirmação da democracia, ainda que ela seja, ao mesmo tempo, atacada e atropelada em muitos aspectos. O ruim é que o país continua sendo muito desigual, apesar dos avanços, não só economicamente, mas em termos culturais também. Além da elite, boa parte da classe média tem uma atitude de quase desprezo com a vida dos pobres. Nos últimos anos, tem havido uma crise política séria. No Governo Lula, sobretudo, mas também no de Dilma, ocorreu essa crise institucional, com o aparelhamento de certas instituições e de empresas governamentais poderosas, como a Petrobras.

O PT e a mistura entre o Estado e o partido

Há claramente uma política de interpenetração entre o Partido dos Trabalhadores e o Estado. Soma-se a isso o fato de que Lula é uma figura preponderante. Ele precisa do PT, mas está acima do partido, o que é facilitado dada a tradição brasileira de apostar em figuras de grande prestígio público. No Brasil, até se diz que o lulismo e o petismo são fenômenos distintos. Agora, não é possível ser catastrofista a ponto de dizer que as instituições democráticas estão acabando, nem tampouco a liberdade de expressão. É só ver como o Supremo Tribunal julga na Venezuela ou na Argentina e como faz isso no Brasil. Mas existe uma pretensão hegemônica muito forte. Criou-se uma dialética amigo-inimigo que vai além de toda a esfera política. E há muita gente amiga agora extremamente corrupta, que já foi inclusive execrada pelo PT no passado com toda a razão.

Os protestos

Certamente são uma reafirmação da democracia. Mas eles têm uma limitação. Eles não encontraram uma canalização partidária e, com isto, a tendência é o esvaziamento até a sua morte, como acabou acontecendo. No caso de São Paulo, os protestos também revelam uma profunda insatisfação da população com a vida na cidade. Agora, eles trouxeram para o vocabulário do cidadão comum expressões, outrora técnicas, como mobilidade urbana, e isso é positivo. Os protestos explodiram pegando de surpresa os partidos e demais grupos sociais organizados, mas não é possível ir para a Avenida Paulista indefinidamente e bloqueá-la, introduzindo o caos na cidade e impondo ainda mais sacrifícios à população. Além disso, eles produziram resultados, muito menores do que se imaginava num primeiro momento, mas produziram.

O mito do crescimento

Existe uma espécie de obsessão pelos números. Nunca houve tantas previsões na imprensa quanto nos últimos anos. Também nunca tiveram tanta importância a divulgação e a repercussão de boletins financeiros nem a opinião dos especialistas da área. Há programas, no caso da tevê, inteiramente dedicados ao quadro do que considero microeconomia, por mais bem feitos que sejam. Parece um observador de laboratório analisando os zeros atrás das vírgulas e, às vezes, se perde o foco do cenário geral.

O novo evangelismo brasileiro

É, sem dúvida, a força evangélica mais significante da América Latina. Possui uma bancada política extremamente conservadora e retrógrada, embora haja exemplos, como o de Marina Silva, de figuras respeitadas. Alguns deles são agressivos, mas dotados de um especial talento para construir um mercado religioso. O número de católicos caiu no Brasil, enquanto o de evangélicos cresceu e segue crescendo. Há programas evangélicos que ocupam grandes horários nos canais de televisão, e são inserções pagas, que custam caro. Além disso, há uma manipulação dessa gente, em sua maioria de classe baixa, que chega a ser primária e pode nos levar a pensar: quem acredita nisso?

Cotas para negros

Não gostei muito da ideia no início. Mas, pouco a pouco, comecei a pensar que, como medida transitória, as cotas fazem sentido e alguns resultados tem sido bons. Elas são bem vistas pela população negra e mulata, mas são mal avaliadas pelo brasileiro branco. Agora, essa questão tem aberto caminho para uma maior igualdade de tratamento dos cidadãos. E trouxe também para a ordem do dia uma discussão importante sobre igualdade, que tinha sido deixada de lado por causa da ideologia do brasileiro como uma amálgama de brancos, negros e índios.

A Universidade de São Paulo (USP), porém, não adotou esse critério em seu processo seletivo – a universidade confere um bônus de 5% na nota do vestibular aos estudantes oriundos do ensino público–. Isso se deve ao fato que a USP foi criada como expressão dos valores culturais de São Paulo e preza muito a meritocracia. Quem valoriza mais a meritocracia do que outros fatores, tende a resistir à ideia de tratamento supostamente privilegiado a determinadas categorias étnicas e sociais. Mas começa a haver exagero nas cotas, com o exemplo da implantação desse sistema para o funcionalismo público e para parlamentares, e isso tem riscos sérios.

Getulismo

A presença do getulismo é relativamente pequena política e socialmente. E a diferença entre o legado de Vargas e o de Juan Domingo Perón, por exemplo, é que este último criou raízes muito mais profundas na sociedade, pois teve de lidar com um movimentos sociais e sindicais mais organizados. Além disso, no Brasil, a criação do PT, com o seu sindicalismo vertical, canalizou uma corrente grande da esquerda. Talvez a maior influência restante seja a legislação sindical, baseada na Carta del Lavoro, de Mussolini, a qual, por sua vez, se deve à proximidade dos ideólogos do período do Estado Novo com o modelo italiano.

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