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Clima mundial piora a partir de 2030, e Amazônia poderá virar floresta seca

Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) alerta que fome, pobreza, doenças e um grande êxodo podem marcar século 21 se não houver mudança na sociedade

Queimada na Amazônia no dia 15 de agosto de 2020.
Queimada na Amazônia no dia 15 de agosto de 2020.CARL DE SOUZA (AFP)
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Milhões de famintos, êxodo, conflitos, queda de atividade econômica e crise social. Esses são alguns dos cenários traçados por cientistas diante da constatação de que as mudanças climáticas vão se acelerar nos próximos anos e que, se não houver uma transformação radical de políticas públicas e estrutura da economia, a presença humana no planeta viverá uma nova era, muito mais hostil.

No horizonte, a projeção é de que o aquecimento do planeta provoque em diferentes partes uma “ruptura social”. Mas em todos os cenários para o século 21, as conclusões apontam para a mesma direção: serão os mais pobres e vulneráveis quem pagarão um preço mais elevado - e por vezes insuportável- pela transformação climática.

A partir de segunda-feira, o IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas) começa a publicar uma série de novos informes, num calendário que está previsto para durar até fevereiro de 2022.

Uma das principais constatações dos cientistas é de que o mundo viverá uma transformação de seu clima anos antes do que se previa originalmente. A elevação intensa poderá já ser identificada na década de 2030, cerca de dez anos antes das estimativas feitas no início do século.

No informe, a temperatura pode exceder nos anos 2030 a marca de 1,5°C em relação ao período de 1850-1900, com uma probabilidade entre 40% e 60%.

Os glaciais continuarão a perder massa por pelo menos várias décadas, mesmo que a temperatura global esteja estabilizada. Há uma alta possibilidade de que tanto a Groenlândia quanto as placas de gelo da Antártida continuarão a perder massa ao longo deste século.

O IPCC também desfaz qualquer ilusão sobre a questão das cidades costeiras. “É praticamente certo que o nível médio global do mar continuará a subir ao longo do século 21, com uma provável elevação de 0,28-0,55 m (no cenário menos pessimista) e 0,63-1,02 m (no cenário mais pessimista) em relação à média de 1995-2014”, diz.

No caso da Amazônia, o rascunho do informe inclui a floresta entre os pontos do planeta que poderão caminhar para um “ponto de ruptura”.

“A floresta amazônica como um repositório de biodiversidade está ameaçada pela relação entre as mudanças no uso da terra e as mudanças climáticas, que poderia levar a uma transformação ecológica em larga escala e a mudanças biológicas a partir de um floresta úmida em floresta seca e pastagens, reduzindo a produtividade e o armazenamento de carbono”, alerta o informe, em sua versão original.

“Eventos extremos mais frequentes e intensos, adicionais às tendências climáticas progressivas, estão empurrando mais ecossistemas para pontos de ruptura além dos quais mudanças abruptas ou transições para um estado degradado ou totalmente diferente podem ocorrer”, alertam.

Num primeiro momento, o documento que está sendo concluído nesta semana afirmará de forma clara que é “muito provável” que as atividades humanas na emissão de CO2 sejam os “principais motores” do aquecimento desde 1979 e “extremamente provável” que a ação humana seja a causa da destruição da camada de ozônio.

Há mais de uma década, o IPCC constatou que as mudanças climáticas já eram uma realidade e seu trabalho foi recompensado com um prêmio Nobel da Paz. Agora, os cientistas apontam que tal cenário está intimamente relacionado com a atividade humana e que não se trata de um ciclo do planeta, um golpe contra negacionistas.

O documento, o primeiro de tal dimensão em sete anos, está sendo negociado por cientistas e representantes de governos. Mas versões iniciais do rascunho do texto, obtidos pelo EL PAÍS, constatam a influência humana para o aumento da umidade atmosférica, para a precipitação e proliferação de eventos extremos.

A influência humana também é considerada “muito provavelmente” como o “principal motor do recuo global das geleiras” e “muito provavelmente” contribuiu para a diminuição observada na cobertura de neve na primavera do Hemisfério Norte desde 1950″.

O levantamento constata ainda que as concentrações atmosféricas de CO2, metano e N2O são mais altas do que em qualquer momento em pelo menos 800 mil anos, e as atuais concentrações de CO2 não foram experimentadas por pelo menos 2 milhões de anos.

Não existem mais espaços para dúvidas: o aquecimento é uma realidade e os eventos climáticos extremos vão se multiplicar pelo século 21, mesmo que a comunidade internacional consiga neutralizar as emissões de CO2.

Os documentos definitivos do IPCC ainda poderão ser modificados, principalmente por pressão de governos. Mas, em suas versões originais e estabelecidas por cientistas, o alerta é claro de que, sem uma ação imediata, o século 21 será um desafio sem precedentes.

Fome

Um dos destaques se refere à capacidade de alimentar sociedades. Num dos documentos que será publicado nos próximos meses pelo IPCC, a mudança climática é projetada como um fator que irá impactar negativamente a segurança alimentar e a nutrição, causando um aumento do número de pessoas em risco de fome em 2050 em até 80 milhões de pessoas.

Segundo o rascunho do informe, “algumas terras secas se expandirão até 2100” e haverá um aumento da concorrência por terra, energia e água através da intensificação da produção de alimentos.

“Os principais impactos projetados da mudança climática no setor agrícola e alimentar incluem um declínio em pesca, aquicultura e produção agrícola, os rendimentos agrícolas serão impactados, especialmente na África Subsaariana, África, América Central e do Sul, Sul e Sudeste Asiático”, alerta o IPCC, indicando para implicações para a segurança alimentar.

Um aumento de temperatura no século 21 de 2,3ºC causaria um declínio de 188-415.000 km2 no uso de terras na Mesoamérica e entre 52-405.000 km2 na América do Sul. A produção de milho seria impactada na Europa, assim como o cultivo de cereais e soja em baixas latitudes são projetadas para diminuir em aproximadamente 5% a cada 1°C de aquecimento. A produção australiana de trigo ainda pode diminuir 7-9% até os anos 2050.

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Os estudos também revelam que produtividade global da pesca marinha e da aquicultura diminuirá, aumentando a insegurança alimentar de milhões de pessoas. O potencial de captura da pesca marinha está projetado para diminuir 40-70% em regiões tropicais, gerando um alto risco de desnutrição na África Ocidental e Oriental.

Os documentos, porém, revelam que o impacto das mudanças climáticas na agricultura já são realidades comprovadas. Nos últimos 30 anos, registrou-se um declínio na safra global entre 4-10%, afetando 166 milhões de pessoas, principalmente na África e América Central. Essas populações, hoje, dependem de assistência humanitária. Na África Subsaariana, a produção de milho e trigo diminuiu em 5,8% e 2,3%, respectivamente.

“Extremos relacionados ao clima, tais como inundações, ondas de calor, secas e episódios de alto nível de concentrações de ozônio aumentaram nos últimos 50 anos em terra e no mar, causando severas perdas localizadas em produção agrícola em muitas regiões”, constatam.

“A variabilidade climática e os extremos afetam negativamente produção e qualidade de alimentos, exacerbam a escassez de alimentos sazonais, aumentam os preços dos alimentos e ameaçam a segurança alimentar, e a nutrição e a subsistência de milhões de pessoas, particularmente na África subsaariana, Ásia-Pacífico, e América Latina”, completam.

Inundações, secas e doenças

O IPCC ainda alerta que, sem adaptação, as mortes causadas pelas inundações aumentarão globalmente em cerca de 130% em comparação ao período entre 1976-2005, num cenário de aquecimento de 2°C.

Mas, ao mesmo tempo, a insegurança hídrica causada pela escassez de água aumentará, afetando potencialmente 170 milhões de pessoas. “Em cenários de maior risco, projeta-se que as cidades sejam negativamente afetadas por secas de até 20 vezes mais até 2100”, alerta.

Um aquecimento de 2,7ºC colocaria entre 21 e 112 milhões de pessoas em estresse hídrico na Mesoamérica, 28 milhões no Brasil e até 31 milhões no restante dos países da América do Sul. No sul da Europa, mais de um terço da população estará exposta ao estresse hídrico se as temperaturas aumentarem em 2°C.

Outro resultado previsto é o aumento de doenças não transmissíveis e infecciosas, incluindo doenças transmitidas por vetores, doenças transmitidas pela água e por alimentos.

“As doenças transmitidas por mosquitos e carrapatos são projetadas para se expandir para latitudes e altitudes mais elevadas”, apontaram os cientistas, indicando uma migração de doenças até agora restritas aos trópicos. “O risco de dengue crescerá e seu alcance será espalhados na América do Norte, Ásia, Europa e África subsaariana, colocando potencialmente outras 2,25 bilhões de pessoas em risco”, destacam.

“As mudanças climáticas provavelmente aumentarão a capacidade vetorial da malária e a infecção em partes da África Sub-Sahariana, África Oriental e Austral, Ásia e América do Sul. Doenças infecciosas ligadas à pobreza se tornarão mais severas, assim como a intensidade de febres hemorrágicas como ébola”, aponta o rascunho do documento do IPCC.

Já na segunda parte do século, com a continuação dos padrões populacionais globais, entre 1,6 bilhão e 2,6 bilhões de pessoas extras são projetadas para viver em regiões com doenças transmitidas pela água, vetoriais e transmissíveis e com deficiências acesso a serviços básicos e infraestrutura de saúde..

“O aquecimento aumenta o potencial para surtos de doenças de origem alimentar, incluindo Salmonella e Campylobacter. O aquecimento apóia o crescimento e expansão geográfica de fungos toxigênicos nas culturas de algas marinhas e de água doce potencialmente tóxicas e bactérias”, indicam.

O IPCC ainda considera como “muito provável” que temperaturas mais altas e chuvas fortes mais frequentes levem a taxas mais elevadas de doenças diarreicas em muitas regiões. “Em países de baixa e média renda na Ásia e na África, o aquecimento a 1°C pode causar um aumento de 7% na diarréia, ligado a um aumento de 8% na E. coli, e um aumento de 3% a 11% nas mortes”, diz.

O desenvolvimento socioeconômico deveria reduzir as mortes por diarréia, mas a mudança climática causaria mortalidade adicional entre as crianças.

Os limites do calor e economia ameaçada

O calor também matará e, para o IPCC, já é hora de começar a avaliar quais são as temperaturas toleráveis. Aumentos substanciais no stress térmico relacionado ao calor levarão a uma maior mortalidade e a morbidez em muitas regiões, especialmente África do Norte, Oeste e Central.

“O excesso de mortes relacionadas ao calor nas cidades australianas é projetado para aumentar entre 200% e 400% durante os anos entre 2031-2080 em relação ao período entre 1971-2020”, diz. Na Europa, o número de pessoas com alto risco de mortalidade triplicará se a temperatura no século aumentar em 3°C.

Quem não morre hoje acaba perdendo produtividade. “Os limites às tolerâncias fisiológicas humanas de calor foram alcançados em muitas regiões. O aquecimento está associado a uma redução estimada de 5,3% na produtividade do trabalho nos últimos 15 anos, e chega a 10% em países de baixa renda em baixas latitudes”, constata.

De uma forma geral, os impactos da mudança climática sobre os recursos hídricos são projetados para reduzir o PIB em muitos países de baixa e média renda, caso não sejam implementadas medidas adequadas de adaptação ou mitigação.

Apenas pelo impacto no abastecimento de água, projeções publicadas pelo IPCC indicam queda de 0,49% do PIB em 2050, com variações regionais significativas para o Oriente Médio (14%); Sahel (11,7%); Ásia Central (10,7%), Ásia Oriental (7%) e Ásia do Sul (0,9 a 2,7%).

Não existem mais dúvidas de que a variabilidade climática já afetaram negativamente a economia em algumas regiões. “Os impactos econômicos das mudanças climáticas incluem mudanças em produtividade agrícola e trabalhista. As estimativas para os países africanos sugerem que o PIB per capita sobre o período 1991-2010 foi, em média, 13,6% menor em comparação a um cenário com a ausência de aquecimento global. O setor financeiro tem visto perdas entre 2013-2020 de quase 1,2% do PIB da Austrália.

A erosão costeira já afeta o transporte e o comércio internacional, enquanto o turismo está enfrentando mudanças nas características de seus destinos e mudanças na demanda.

Ruptura social: pobreza e o grande êxodo

Para milhões de pessoas pelo planeta, a transformação do clima será traduzido em miséria e fuga de suas próprias terras. Desde 2008, uma média de 12,8 milhões de pessoas são desalojadas anualmente por desastres naturais, sendo as tempestades e enchentes os dois maiores motores. Mas a taxa promete aumentar.

Num dos cenários trabalhados pelo IPCC, o número de pessoas vivendo em extrema pobreza poderá ser incrementada em 132 milhões em relação aos atuais 700 milhões que já se encontram nessas condições. Como resultado, as “futuras mudanças climáticas podem aumentam o deslocamento forçado”. “Mesmo com as mudanças climáticas atuais e moderadas, as pessoas vulneráveis experimentarão uma maior erosão de sua segurança de subsistência que pode interagir com crises humanitárias, como o deslocamento e a migração forçada e conflito violento, e levam a pontos de ruptura social”, alertam.

De acordo com as projeções do IPCC, a migração atual e futura não está relacionada apenas com conflitos armados. Mas com fatores climáticos, padrões de crescimento populacional e da capacidade de sociedades de se adaptar a tal cenário.

Nos próximos anos, entre 634 milhões de pessoas e 1,4 bilhão de pessoas poderão estar expostas a riscos associados à elevação do nível do mar. Só um aumento médio do nível do mar de 0,8 m até 2100 inundariam áreas com uma população total projetada de até 88 milhões.Nos centros urbanos, ilhas de calor urbano poderão deixar entre 350 milhões e 410 milhões de pessoas sem acesso a água.

“Mais 1,7 bilhão de pessoas serão expostas a calor severo, 420 milhões de pessoas a ondas de calor extremo e cerca de 65 milhões de pessoas a ondas de calor excepcionais cada 5 anos se as temperaturas aumentarem de 1,5°C a 2°C ao longo do século”, diz.

No ano de 2080, entre 390 milhões e 490 milhões de pessoas em centros urbanos na África Subsaariana e até 1,1 bilhão na Ásia poderiam ser afetados por mais de 30 dias de calor mortal por ano. Ondas de calor mais frequentes e intensas também afetarão as comunidades mediterrâneas e as da Europa Ocidental, Central e Oriental.

“O deslocamento pode reconfigurar dramaticamente as comunidades com implicações sociais, sistemas de coesão e conhecimento”; alerta o documento. Mas os cenários também revelam como a realidade também será mais complexa: mesmo expulsas de suas terras, milhões de pessoas podem viver uma situação de maior imobilidade ou “aprisionamento”, já que não terão meios de se deslocarem para outros locais.

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