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Desligue a criança! A desconexão digital em cinco etapas

Durante o confinamento houve uma explosão no consumo de telas e a superexposição implica riscos de ansiedade, sobrepeso e inclusive a perda de visão. Vários especialistas indicam o caminho para deixar de lado os dispositivos de maneira saudável e em família

A natureza te permite conectar, mas também investigar e manter ativos os processos de curiosidade. Na imagem, uma menina observa atentamente um bicho que encontrou em um dia de escola no grupo de jogos do Naturaleza Saltamontes, em Madri.
A natureza te permite conectar, mas também investigar e manter ativos os processos de curiosidade. Na imagem, uma menina observa atentamente um bicho que encontrou em um dia de escola no grupo de jogos do Naturaleza Saltamontes, em Madri.Katia Hueso
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Com o desconfinamento, chegou ao consultório da psicóloga María Guerrero um novo perfil de paciente: crianças que usavam muito pouco ou nada as telas e agora não há maneira de que façam algo sem elas. No caso dos adolescentes, a dependência geralmente lhes tira horas de sono ou faz com que gastem dinheiro em jogos online ou em melhorias de aplicativos.

Além do hábito, María Guerrero está preocupada com as consequências para a saúde física e mental. “Vários estudos nos falam sobre a relação entre o abuso de tecnologia e o isolamento, problemas de obesidade, hábitos sedentários com perda de massa muscular, perda de visão... Mas também pode desencadear ansiedade ou depressão e, de acordo com uma experiência realizada pela revista americana de pediatria, crianças que estão em contato de forma habitual com dispositivos móveis, tablets ou computadores são mais irritáveis e mostram menos capacidade de atenção, memória e concentração do que aquelas que não estão”, diz Guerrero, que é psicóloga do aplicativo de controle parental Qustodio.

Segundo Guerrero, o cérebro de uma criança “funciona por hábitos e estes demoram cerca de 21 dias para se estabelecer. E a tecnologia foi a única via de comunicação e lazer durante mais de 100 dias”. Esta especialista costuma explicar aos pais que, se seu filho está mais preso do que o normal, não é que ele seja esquisito, mas é algo comum: “A maioria dos jogos, redes sociais e aplicativos para crianças foi projetada para o que cérebro secrete substâncias relacionadas ao prazer. Se é difícil para um adulto abandonar um hábito, no caso do cérebro de uma criança, que é mais imaturo e com menor capacidade de autocontrole, é ainda mais delicado”.

Mas antes que o leitor coloque as mãos na cabeça e se deixe levar pelo catastrofismo, a psicóloga alerta: “Existe um caminho de volta, mas não é fácil e haverá resistência à mudança”, diz esta especialista em novas tecnologias.

Existe solução, concorda e insiste o professor barcelonês e conselheiro de famílias Francisco Castaño: “Não somos supermães nem superpais. Não temos culpa de que saíram no nosso controle. Tivemos de ficar em casa, fazer teletrabalho e cozinhar com as crianças, que devem ser cuidadas, e as deixamos esquecidas na frente da tela... Não devemos nos criticar. São circunstâncias supervenientes e vamos mudar isso”, aponta o professor, que acaba de publicar o livro La Mejor Versión de Tu Hijo (A Melhor Versão do Seu Filho).

Etapa 1. Calma, seus filhos certamente não são viciados em telas

Antes do confinamento os especialistas já tinham alertado sobre o preocupante aumento do uso de tecnologias nas meninas, meninos e adolescentes.

Manuel Bruscas, vice-presidente da área de produto do Qustodio, um aplicativo de controle parental usado por mais de 50.000 famílias na Espanha, explica que em fevereiro já havia um uso médio de duas horas por dia por parte de crianças entre 4 e 15 anos, de acordo com dados de uso dos usuários do aplicativo. E que em alguns aplicativos como o YouTube passou de 39 minutos por dia em 2019 para mais de 63 exatamente antes do confinamento, e que se tornaram 75 minutos em 30 de abril. “O uso das tecnologias aumentou 180% e será difícil recuperar os números iniciais. Muitas crianças notarão que lhes falta algo, as relações são construídas com olhares, com empatia, com relação física e isso a tela não te dá, então é aí que devemos provocar o processo de desconexão”, explica Bruscas.

Mas o fato de que as tecnologias sejam usadas mais do que antes ou que crianças e adolescentes relutem em largar a tela não significa que sejam viciados. O psicólogo Garicoitz Mendigutxia, diretor do programa Suspertu, para a prevenção de dependências do Projeto Hombre Navarra, acredita que com a volta do contato social diminuirão esses hábitos, que considera “conjunturais”. Em seu projeto, as meninas, os meninos e os adolescentes que eram atendidos antes do confinamento por esses usos conflitivos representavam apenas 10% do total de pacientes. “E não detectamos uma mudança alarmante de comportamento por causa desses processos”, explica.

Também esclarece que, para que seja considerada uma dependência, ou melhor, um “uso conflitivo das tecnologias”, estas devem lhes subtrair tempo e inclusive dinheiro de outras atividades da vida. “Deve haver situações de isolamento social, afetando sua dinâmica de vida ―por exemplo, que a família não possa sair para jantar porque o filho prefere ficar conectado―, só se relacionam com as redes ou têm problemas e conflitos familiares ou porque ficam conectados até as quatro da manhã e isso afeta o desempenho escolar”, explica o psicólogo. Se não for esse o caso, o plano de ação será mais fácil que funcione se também forem acrescentadas quatro palavras: tenacidade, perseverança, limites e alternativas.

Etapa 2. Fale com as crianças e defina os limites para a desconexão progressiva

Educadores, psicólogos e especialistas em dependência concordam que esses hábitos saudáveis devem começar quando as crianças são muito pequenas e começam a ter acesso às telas: é preciso sentar para conversar com elas e estabelecer os limites de uso tanto de tempos e horários quanto de espaços. “É um relaxo deixá-lo diante da tela quando é pequeno e vamos a um restaurante, mas é preciso pensar duas vezes porque isso terá consequências”, aponta o psicólogo, que é a favor de que meninos, meninas e adolescentes passem a maior parte do dia sem telas. Os gurus de Silicon Valey, por exemplo, educam sem telas porque sabem que é melhor para um crescimento saudável. “Assim como educamos na alimentação e no consumo, devemos educar digitalmente nossos filhos”, diz Manuel Bruscas, do Qustodio.

“É preciso sentar para explicar-lhes as normas e por que devem ser seguidas. Se você fizer com que participem, sentirão que fazem parte do processo e entenderão o motivo, serão muito mais colaborativos. Eles seguem as regras perfeitamente se as entenderem”, explica Mendigutxia.

María Guerrero acredita que é preciso recorrer a argumentos científicos e explicar-lhes que as telas podem prejudicar a saúde. Os especialistas em visão alertaram para um agravamento da saúde visual em grande escala durante o confinamento e a Fundação Pau Gasol afirma que a Espanha é a líder europeia em obesidade infantil. O excesso de telas gera estresse, irritabilidade, isolamento e depressão... “Com crianças não vale qualquer argumento, elas precisam de dados concretos e claros para colaborar”, explica Guerrero. E ressalta: “Proibir é inútil, porque terão de usar a Internet para estudar, manter contato com os colegas... E quando proibimos totalmente algo impedimos que nossos filhos aprendam a estabelecer uma relação saudável e isso gera problemas mais graves a longo prazo, porque acaba se tornando um objeto de grande desejo”.

Etapa 3. Aqui sim, agora sim

Os especialistas também propõem que os espaços e os momentos sejam limitados: “O celular ou o tablet deve ser usado em um espaço comum da casa, não deve ser usado enquanto estivermos com a família nas refeições e tampouco deixá-los sozinhos. Assim como você não deixa seu filho sozinho em uma boate ou no meio de Nova York, não devemos deixá-los sozinhos na Internet, devemos estar ao lado deles, supervisionando-os”, aponta. Os aplicativos de controle parental podem ajudar nesses limites: se o dispositivo for desligado, eles não culpam os pais e, além disso, as famílias podem monitorar o que os filhos veem e conversar com eles sobre isso.

Também recomendam estabelecer tempos máximos de uso, dependendo da idade. Embora Bruscas ressalte que não se trata tanto do tempo, mas da qualidade do que veem na rede. “Se seu filho é fã de piano ou de programação e passa horas assistindo a tutoriais online, na realidade está cultivando um hobby”, diz. Além disso, não recomenda a desconexão total: “Você não pode colocar portas no campo e passar do tudo ao nada, mas educar para um uso saudável”. E, embora não seja possível estabelecer receitas para todos os casos, Francisco Castaño recorre à literatura científica para argumentar onde começa a ser um uso pouco recomendável e define duas horas como limite para os maiores. A seguir, uma proposta para o uso das telas de acordo com a idade, com base nas recomendações do professor Castaño.

Etapa 4. Seja seu modelo

“Somos o que nossos pais nos ensinaram quando tentavam não nos ensinar nada”. Esta frase do filósofo e escritor Umberto Eco é uma das favoritas do educador Francisco Castaño para explicar às famílias que passam por seu consultório a importância do que mães e pais fazem nos processos educacionais.

“Os menores acabam fazendo o que os adultos fazem. Assim como você não pode dizer ao seu filho para não beber álcool com uma cerveja na mão, você não pode pedir para ele desligar o celular se você não para de olhá-lo. Por isso a reflexão e o plano de ação devem ser em família e com o compromisso de todos, de pais e mães, de preservar espaços sem tecnologia”, conclui Castaño. Assim, mães e pais do mundo preocupados porque seus filhos não largam os dispositivos tecnológicos, olhem-se no espelho e desconectem-se também.

Etapa 5. Tempo juntos: alternativas de lazer, sair ao ar livre e compartilhar isso com as crianças

Bruscas acredita que as telas nunca deveriam “substituir interações ricas com outras pessoas, com a família ou com amigos”. Por isso propõe compartilhar esportes, passeios, atividades ao ar livre, atividades domésticas, fazer refeições, tarefas de limpeza, organização da casa... “Fazer coisas com elas também te dá motivo para falar e permite que você se aproxime das telas e veja em que seu filho está interessado, conheça isso e o questione”, diz Mendigutxia, psicólogo do Projeto Hombre Navarra.

Para María Guerrero, a melhor alternativa é ao ar livre, em família. “As crianças precisam brincar ao ar livre porque seu cérebro se desenvolve mais”, explica. Um estudo com 12.000 famílias mostrou que os presos dos EUA passam mais tempo ao ar livre, no pátio da prisão, do que crianças. Existem até empresas que te ajudam a fazer desconexões na natureza, como a Desconnexions, que oferece atividades em toda a Espanha para se desconectar da tecnologia e se conectar com outras pessoas e com a natureza, além de aprender sobre o meio ambiente. E são os mesmos responsáveis pela criação do Dia Mundial sem Celular, em 15 de abril.

O psicólogo e fundador da empresa, Joan Amorós, diz que a natureza pode atenuar a depressão e a ansiedade, ajudar a prevenir ou reduzir a obesidade e a miopia, fortalecer o sistema imunológico e relata muitas outras vantagens para a saúde física e psicológica. Precisamente, a maioria dos problemas de saúde que as telas podem provocar. Amorós propõe “uma hora da natureza para cada hora de tela”. E em que se baseia essa recomendação? “Os ambientes naturais nos ajudam a descongestionar a vista e a atenção que você presta a um estímulo tão forte e conciso quanto a tela. Oferecem estímulos suaves, como o mar, as nuvens ou o pôr do sol, que atraem a atenção sem que tenhamos de estar concentrados e isso permite descansar a mente do cansaço produzido pelas telas ou pelo trabalho”.

Mãos à obra, puxe o cabo!


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