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Falta de hospitais perto de casa custou a vida de Gilmar, vítima do coronavírus em Duque de Caxias

Segundo IPEA, 228.000 pessoas de baixa renda e acima de 50 anos das 20 maiores cidades vivem a mais de 30 minutos a pé de unidade de saúde, o que prejudica a busca por ajuda

Gilmar Souza de Oliveira (à direita) morava com sua família em Duque de Caxias, Rio de Janeiro. Ele faleceu em 29 de abril com sintomas da covid-19.
Gilmar Souza de Oliveira (à direita) morava com sua família em Duque de Caxias (RJ). Ele faleceu em 29 de abril com sintomas da covid-19.Arquivo Pessoal
Felipe Betim

Gilmar Souza de Oliveira era conhecido por ser uma pessoa alegre, pelo sorriso que exibia no rosto. Numa segunda-feira, 20 abril, o motorista de aplicativo e pai de família apresentou os primeiros sintomas da covid-19. Ao longo dos 10 dias seguintes, a febre baixa se tornou alta, ele perdeu o olfato e o paladar, passou a sentir falta de ar e teve infecção urinária e complicações causadas pela diabetes. Quando seu quadro se agravou, os poucos hospitais da região já estavam lotados e ele teve de aguardar uma transferência para a cidade de Volta Redonda, a mais de 130 quilômetros de sua casa. Não deu tempo: morreu no dia 29, uma quarta-feira, aos 51 anos. Ele era casado e tinha filhos, duas netas e um neto. “Foi tudo muito rápido, ainda estou tentando assimilar. Todo dia fico pensado se poderia ter feito diferente, ter buscado um hospital maior" conta a esteticista e cabeleireira Cileide Gomes da Silva, 50, viúva de Gilmar. Ela teve os sintomas do coronavírus junto com o marido, mas, após mais de 15 dias de isolamento em casa, já estava melhor.

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Gilmar vivia com Cileide no bairro do Pantanal, em Duque de Caxias, município da região metropolitana do Rio de Janeiro com cerca de 920.000 habitantes.Trata-se da segunda cidade do Estado do Rio de Janeiro com o maior número de óbitos confirmados por coronavírus, atrás apenas da capital fluminense. Até o dia 26 de maio eram 1.953 casos e 187 mortes registradas.

Perto da casa da família não há nenhum posto de saúde nem hospital do SUS. Para chegar até a Unidade de Pronto Atendimento (UPA) mais próxima é preciso percorrer alguns quilômetros de carro ou de ônibus —e, neste caso, ainda percorrer uma passarela para cruzar a rodovia Washington Luís. Uma distância impossível de vencer a pé. Na região, há também poucos hospitais que realizam internação de casos graves de infecções respiratórias, sendo os principais deles o Hospital Municipal Dr. Moacyr Rodrigues do Carmo e o Hospital Estadual Adão Pereira Nunes Saracuruna. “Na quinta-feira [23 de abril] pegamos um carro e fomos ao Moacyr. Uma doutora para quem ele fazia corrida ligou pedindo para ele ir nesse dia. Ele ficou na UPA ao lado do hospital, que estava lotado. Fizeram exames e viram que ele tinha uma infecção urinária e a diabetes descompensada, e a febre muito alta”, conta Cileide. Poucos dias depois da morte de seu marido, a Prefeitura inaugurou o Hospital São José, exclusivo para o tratamento da covid-19 no município.

O Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) divulgou recentemente um estudo sobre acesso ao SUS nas 20 maiores cidades do Brasil, entre elas Duque de Caxias. Constatou que um total 228.000 pessoas com o mesmo perfil de Gilmar —isto é, acima de 50 anos e de baixa renda— não poderiam, por causa da distância, caminhar por menos de 30 minutos até uma unidade de saúde do SUS que faz triagem e encaminha os casos suspeitos de covid-19 a hospitais. Além disso, 1,6 milhão de pessoas com esse mesmo perfil moram a mais de cinco quilômetros de um hospital com capacidade de internar pacientes em estado grave de insuficiência respiratória com suspeita de coronavírus.

Cileide concorda que a falta de leitos de hospital ou de unidades básicas de saúde que pudessem fazer a triagem fez toda a diferença. Ela acredita que uma maior oferta de equipamentos do SUS poderia ter salvado a vida de Gilmar. Na quinta-feira de 23 de abril, após a primeira ida com Gilmar para a UPA, os médicos mandaram a família de volta para casa. Ele retornou na sexta para o lugar e, diante do agravamento de seu quadro, permaneceu internado até domingo com o auxílio de oxigênio. Com sua melhora, retornou mais uma vez para casa. Mas às 6h40 da manhã de segunda-feira, ele já estava mais uma vez no centro médico. Só então pediram uma tomografia. “Fizeram às 8h da manhã, mas o resultado só saiu às 19h. Enquanto isso ele ficou sem comer, esperando em uma cadeira de rodas de ferro. Somente às 22h é que consegui interná-lo. Ele ficou na UPA mesmo, no corredor da sala amarela”, narra a viúva. Ele não chegou a fazer o teste para detectar a covid-19, mas a tomografia apontava para a existência de características da infecção pelo novo vírus, acrescenta ela.

Na terça-feira, Gilmar foi transferido para a sala vermelha da UPA, reservada para os casos mais graves, e entubado. Com o hospital ao lado também lotado, sem leitos para a internação, ele precisou aguardar ser transferido para um de Volta Redonda. Na quarta-feira, ele faleceu. “Se ele tivesse sido internado segunda-feira cedo... Mas o sistema é muito lento”, lamenta Cileide. “Deixei ele lá na segunda e não vi mais. Procuro não me culpar, mas me pergunto por que não busquei um hospital maior. Hoje eu não levaria para lá”.

Quarentena em Duque de Caxias

Além de pessoas acima de 50 anos, o levantamento do IPEA levou em conta as os que estão entre os 50% mais pobres da população brasileira. “Optamos por focar esse grupo porque ele inclui pessoas na faixa etária com maior vulnerabilidade à covid-19, que são mais dependentes do sistema público de saúde e tendem a enfrentar maiores dificuldades de mobilidade urbana e de acesso a serviços de saúde”, afirma o texto. Essa população vulnerável nas 20 maiores cidades brasileiras somam um pouco mais de 4 milhões de pessoas, o que significa que, de acordo com o estudo, 40,9% tem menor acesso ao SUS para internação.

Em Duque de Caxias, município da região metropolitana do Rio, cerca de 81.000 pessoas se encontram em situação de vulnerabilidade, das quais 13.500 estão longe de unidades de saúde e 67.000 vivem distantes de hospitais que internam casos graves de infecção respiratória. Isso significa que 82,4% da população vulnerável tem pouco acesso ao SUS para a internação, a maior cifra do estudo. “A maioria das pessoas que moram aqui são trabalhadores de serviços considerados essenciais, domésticas, auxiliares de serviços gerais... Os ônibus continuam saindo super lotados”, conta Marilza Barbosa Floriano, militante do Movimenta Caxias e ex-companheira de Gilmar.

Ela também mora no bairro do Pantanal, mais especificamente no Morro do Sossego, “a periferia da periferia”, segundo conta. E relata a facilidade com que o novo vírus se espalha no local. “Na minha casa a água vem de poço. Onde moro não tem asfalto, não tem saneamento, o esgoto é jogado no córrego. Quando chove, alaga".

Além disso, o município pouco se mobilizou para combater a pandemia. O prefeito Washington Reis (MDB-RJ) negava a gravidade do problema e dizia que a cura viria da Igreja. Acabou ele mesmo internado por coronavírus. “Recebemos alertas pela sirene da Defesa Civil em que pediam para ter cuidado com as mãos, com aglomerações, com notícias falsas. Mas o prefeito estimulou o povo a ir pra rua. O comércio foi o último a fechar, mas mesmo hoje ele funciona com meia porta aberta. A população se aglomera mesmo, a cidade continua a funcionar normalmente", conta Marilza.

Depois que Gilmar faleceu, seus familiares e amigos ainda tiveram que esperar dois dias para enterrá-lo. Não havia espaço nos cemitérios da região diante da alta procura provocada pelo vírus. Na sexta-feira 1 de maio, feriado do Dia do Trabalhador, Cileide se despediu do marido. O caixão estava lacrado. “Podia ao menos ter aquele vidro para ver o rosto. Você não sabe nem quem está enterrando”.

Os casos de Rio de São Paulo

Numericamente, São Paulo e Rio de Janeiro, as duas cidades brasileiras mais populosas, possuem o maior número de pessoas vulneráveis. Na capital paulista, que possui mais de 12 milhões de habitantes, cerca de 33.200 pessoas vivem distantes de uma unidade de saúde que podem fazer o encaminhamento para hospitais, e aproximadamente 263.000 pessoas vivem a mais de cinco quilômetros de um hospital. Essas pessoas estão localizadas nas zonas norte, zona leste e principalmente zona sul, nos extremos da cidade. A taxa de pessoas vulneráveis com pouco acesso ao SUS é de 25%, e está entre as menores analisadas, de 25%. No Rio, que tem mais de 6,5 milhões de habitantes, as cifras são piores que as da capital paulista: cerca de 52.000 pessoas vivem a mais de 30 minutos caminhando de uma unidade de saúde e mais de 384.000 vivem a mais de cinco quilômetros de um hospital, o que significa que 55,5% da população mais vulnerável tem menor acesso ao SUS —uma das taxas mais elevadas. Essas pessoas estão espalhadas sobretudo pela zona oeste, a região de maior área da cidade.

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