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Governo adia Enem após pressão que trouxe à tona o fosso entre ensino público e privado

Ministro, que chegou a dizer que objetivo da prova não era"corrigir injustiças”, postergou por 30 a 60 dias O exame. Alunos relatam dificuldades para estudar em meio à crise provocada pela covid-19

Felipe Betim

Camilly Maia vive em Porto Velho e, por não ter computador, precisa acompanhar as aulas do colégio pelo celular para se preparar para o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem). Alice Ramoa, do Recife, viu a velocidade da internet diminuir porque seu pai ficou desempregado durante a pandemia de coronavírus e não pôde pagar a última mensalidade. “Já estava difícil estudar porque os livros deste ano vieram sem os principais conteúdos que caem na prova. Agora o Governo quer que sejamos autodidatas". Kayllane Victoria da Silva, da região metropolitana de São Paulo, passou a ter que cuidar da irmã de dois anos que ficou sem creche durante a quarentena. Kauani Beatriz, da zona leste da capital paulista, também não tem computador, divide a casa com seus pais e mais cinco irmãos e não consegue se concentrar direito nos estudos. Já Layane Souza mora em Belford Roxo, na região metropolitana do Rio de Janeiro, e conta com uma estrutura de estudo melhor, mas vive as mazelas de morar em uma área de risco. “A qualquer momento o tiroteio pode estourar.”

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Em comum, as cinco garotas têm 17 anos e cursam o 3º ano do Ensino Médio em escolas públicas estaduais. Com a pandemia de coronavírus, deixaram de ter aulas presenciais e de contar com a estrutura de estudo oferecida por suas escolas. E fazem o possível para, de casa, se prepararem para o Enem, a principal porta de acesso a universidades públicas e privadas do país. Estudar a partir de plataformas online não é o mesmo que assistir às aulas presencialmente. Assim, defendiam que a prova fosse adiada para que tivessem tempo de terminar o ano letivo após a crise sanitária, o que o Governo Jair Bolsonaro, após a pressão de estudantes e do próprio Senado federal, acabou fazendo nesta quarta-feira.

Os obstáculos das jovens são os mesmos de outros milhões que estudam nas redes públicas de ensino. De acordo com um levantamento da ONG Casa Fluminense feito com os 5,5 milhões de inscritos no Enem em 2018, 42,4% deles (2,3 milhões) não tinham computador em casa. Destes, 89,1% são de escolas públicas, 70,3% são negros e negras e 64,6% são mulheres.

O Governo Bolsonaro pretendia aplicar as provas presenciais nos dias 1 e 8 de novembro e as digitais, que são inéditas, nos dias 22 e 29 de novembro. Nesta quarta-feira, o MEC afirmou que haverá o adiamento da aplicação dos exames nas duas versões, de 30 a 60 dias do que havia sido previsto nos editais. Por nota, afirmou que a decisão foi tomada em atenção “às demandas da sociedade e às manifestações do Poder Legislativo”. Mas, no dia anterior, o ministro da Educação ainda não se dizia totalmente favorável à ideia. Em seu Twitter, Abraham Weintraub aventava a possibilidade da realização de uma enquete para consultar os estudantes sobre um possível adiamento.

Especialistas que atuam na área eram unânimes em dizer que o não adiamento privilegiaria os alunos de escolas privadas com mais condições financeiras e melhor estrutura de estudo em casa. Também por pressão de entidades, estudantes e instituições de ensino, o Senado Federal já havia aprovado na terça-feira, por 75 votos a 1, um projeto que previa a “prorrogação automática das provas, exames e demais atividades de seleção para acesso ao ensino superior até que fossem concluídos os respectivos anos letivos nas instituições de ensino público e privado”. Foi de Flavio Bolsonaro, filho do presidente, o único voto contrário. O texto foi encaminhado para a Câmara dos Deputados, onde esperava-se um amplo apoio dos parlamentares. “Espero que o Governo decida antes, para não parecer uma medida do Legislativo contra o Executivo. O Congresso tem posição amplamente favorável ao adiamento. O #adiaEnem é um pedido de todo o Brasil”, escreveu o presidente da Casa, Rodrigo Maia, em seu perfil do Twitter, antes do anúncio do adiamento pelo ministério.

De acordo com o órgão do Governo federal, 4 milhões de estudantes já se inscreveram para o Enem deste ano e as 100.000 vagas para as provas digitais já foram preenchidas. Até o início desta semana, argumentava que via na manutenção do Enem em 2020 a preservação do "direito e da liberdade de quem optou por fazê-lo”, segundo afirmou a Secretaria Especial de Comunicação Social do Governo (Secom) no Twitter. O ministro Abraham Weintraub chegou a dizer em reunião com senadores que o Enem“não foi feito para corrigir injustiças” e que serão aprovados os melhores, os mais preparados.

A adolescente Alice lembra o que sentiu quando soube dessa fala. “Não tenho nem como explicar a dor de ouvir isso. Aparentemente os melhores são aqueles que têm dinheiro para pagar a melhor internet e os melhores cursos”, argumenta. Ela afirma que a maioria das escolas públicas do Recife não está oferecendo aulas online nem os professores estão tirando dúvidas. “Nada, nada. Ninguém nunca pensou numa pandemia assim, e isso gera muito transtorno de ansiedade e depressão. Está sendo muito difícil, o Enem é a maneira que a maioria de nós tem de encontrar uma oportunidade”.

Débora Dias, coordenadora dos cursinhos pré-vestibular comunitários da Uneafro na Fazenda da Juta, zona leste de São Paulo, concorda que, de fato, o Enem por si só não vai reparar a desigualdade social. “Mas hoje ele vem sendo um importante portal para que jovens pretos e periféricos entrem na universidade. Ao desconsiderar todas as dificuldades para o jovem da periferia e achar que o ensino à distância supre o aprendizado presencial, esse portal se fecha”, explica. “Tivemos muitos avanços com a política de cotas, mas quando você ignora as dificuldades que esses alunos estão sofrendo, você reafirma que a universidade é um lugar onde eles não devem estar”, acrescenta.

Agravamento de problemas da educação pública

Dias ainda conta que os professores da Uneafro vêm tentando usar a plataforma online menos para passar conteúdo e mais para manter os alunos motivados. “Mas é difícil manter os sonhos em meio ao caos. Observamos que existe uma grande dificuldade em conseguir sentar e estudar”. Para além de problemas como falta de internet e de espaço de concentração, outras questões ainda mais elementais ganharam força durante a pandemia. “Nesse processo, os alunos estão lidando com a própria fome. Estamos fazendo entrega de cesta básica para que o aluno não tenha fome para poder sentar e estudar. A merenda nas escolas era uma das principais e únicas refeições”, explica.

Valesca Mota, pedagoga que atua no cursinho pré-vestibular comunitário da Rede Ubuntu Educação Popular, conta que muitos de seus alunos “têm tido crises de ansiedade por causa da incerteza sobre o futuro”. Para ela, “o sistema público de ensino já é defasado nas aulas presenciais, e com a distância isso só se agrava”. São problemas anteriores à pandemia, como o enfrentado por Layane em Belford Roxo. “Como moro num local perigoso, muitas vezes tem operação policial e ficamos sem ônibus, sem aula na escola... Toda semana tenho a certeza de que não vou conseguir sair um dia”, afirma. Por ter internet, não precisar trabalhar e ter espaço em casa para se concentrar, conta estar tendo “o mínimo de preparação possível para o Enem”. Pretende cursar psicologia, mas ainda pensa em outras carreiras de humanas.

Kayllane é uma das 350 estudantes matriculadas nos cursinhos da rede Ubuntu em Itapecerica da Serra, São Paulo. Além de estudar para o Enem, a garota também faz curso técnico em contabilidade à noite e pretende estudar a mesma carreira na universidade. “Eu tinha escola de 7h às 12h35. Depois disso, almoçava, estudava, dormia... E depois fazia o curso de 18h45 às 22h45”, conta. Agora, precisa conciliar os estudos com as tarefas de casa e cuidar de sua irmã de dois anos, que ficou sem creche. Até pouco tempo também não tinha nem computador nem internet em casa. Precisava usar o pacote de dados de sua avó para estudar. Isso fez com que acumulasse quase dois meses de atividades pendentes tanto na escola como no curso técnico. “Minha mãe conversou com a amiga dela para emprestar o notebook até arrumar um para mim. Mas vai ser difícil com a pandemia”, afirma.

Além de dividir o quarto com três irmãs, o que afeta seu rendimento na hora de estudar, a jovem Kauani se queixa da estrutura de aula à distância que seu colégio oferece. Ela pretende cursar arquitetura e, além de cursar o 3º ano do Ensino Médio, também fazia o cursinho da Uneafro na Fazendo da Juta aos sábados. “Mas estou com muita dificuldades para estudar, minhas dúvidas não tem como ser respondidas durante a vídeo aula. Elas são gravadas antes e colocadas no aplicativo Google Class, e sempre demoram uns dois dias para responder”, conta.

É também através desse aplicativo, além do WhatsApp e Facebook para tirar dúvidas com professores e do YouTube para assistir algumas aulas, que Camilly, de Porto Velho, busca estudar. “Eu tenho internet boa em casa. Não tenho computador mas tenho celular, muitos livros, e com uma boa rotina acho que consigo", afirma. "Mas precisa ter foco, fazer cronograma, se organizar bem para não procrastinar... Aula presencial é bem melhor, a gente vai fazendo perguntas”, completa. Ela acredita, no entanto, que alunos com renda mais alta “vão ter condições de pagar curso online e professores para estudarem com eles”, enquanto muitos de seus colegas “não tem nem computador nem celular”.

Cláudia Costin, professora da FGV-RJ e de Harvard, afirma que muitos governos até tentaram “dar uma resposta educacional”, seja com o ensino à distância seja oferecendo pacote de dados para aqueles que não tem internet. “Mas não houve tempo para que as redes de ensino público se organizassem, enquanto as escolas privadas não têm problemas de escala”, explica. Para a especialista, “a pandemia vem agravando ainda mais as desigualdades educacionais”. Ela defende que o Brasil adote medidas de outros países que adiaram seus exames e estão oferecendo tempo para que alunos e escolas voltem às atividades e tenham tempo de se reorganizar. “Em Portugal, o Governo determinou que o secundário superior retornasse primeiro às aulas, para que pudessem ter mais tempo de aula presencial”, explica.

Catarina Parente, aluna do 3º ano de uma escola de elite do Rio de Janeiro, está ciente de seus privilégios ao se preparar para a prova deste ano. Adiar o Enem para ela se trata de “justiça social”. Contudo, a jovem relata que mesmo os alunos de escolas privadas estão tendo dificuldades ―diferentes de quem estuda na rede pública― no estudo e na adaptação da rotina. “Estou passando por readaptação de hábitos, métodos e rotinas. A gente se sente muito desmotivado, com medo de não dar conta, porque está sendo algo novo para todo mundo”, relata. Os alunos de sua escola se juntaram a um abaixo assinado com outros centros de ensino privado pedindo que o exame fosse adiado. “É preciso entender que estamos passando por uma pandemia e que os estudantes precisam ser ajudados e precisam ter a saúde mental valorizada”.

Onde a exclusão digital é maior

Ainda de acordo com o levantamento da Casa Fluminense, Maranhão, Pará e Amapá são os Estados com maior exclusão digital. Neles, cerca de 67% dos inscritos no Enem não têm computador. Nas últimas colocações aparecem Paraná, São Paulo e Santa Catarina, com taxas de entre 28,3% e 25,9%, respectivamente. “Querer que todo mundo esteja no mesmo padrão de preparo com as dificuldades que temos é aumentar ainda mais o abismo social”, diz Henrique Silveira, coordenador executivo da ONG.

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