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De vítimas a algozes: a cadeia de abusos nos Legionários de Cristo

Alguns sacerdotes acusados de pedofilia foram primeiro vítimas de abusos e depois se tornaram cúmplices, de acordo com uma dinâmica de poder descrita por denunciantes e ex-legionários

Marcial Maciel, no seminário de Ajusco (Cidade do México), na década de 90.
Marcial Maciel, no seminário de Ajusco (Cidade do México), na década de 90.Legioleaks
Georgina Zerega

Em maio de 2019, quando Ana Lucía Salazar denunciou publicamente o padre mexicano Fernando Martínez por ter abusado dela em uma escola dos Legionários de Cristo em Cancún, ela ainda não sabia que ele também havia sido vítima de abusos. Dois meses antes, quando a Justiça italiana condenou o ex-padre mexicano Vladimir Reséndiz por abusar de duas crianças, alguns de seus antigos companheiros da Legião descobriram que, antes de ser algoz, ele tinha sido vítima de abusos. “Faz parte da metodologia da Legião: preparar-te para o abuso, abusar de você e tornar-te cúmplice”, diz Erick Escobar, ex-legionário que deixou esse movimento para iniciar uma luta contra os casos de pedofilia.

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No final de dezembro, a Legião de Cristo, uma das congregações mais poderosas da Igreja Católica, surpreendeu o mundo quando divulgou um relatório admitindo 175 casos de abusos de menores dentro da ordem fundada pelo sacerdote mexicano Marcial Maciel em 1941, grande parte deles cometidos por seu próprio fundador, e desde o momento da fundação. No entanto, o mais revelador não foi a constatação das vexações denunciadas por diferentes vítimas ao longo de oito décadas, mas o que o relatório deixava entrever: que a pedofilia dentro da Legião não era o resultado da perversão de alguns padres, mas parte de uma dinâmica fundacional que alcançava todos os níveis e garantia espaços de poder àqueles dispostos a participar ou calar a boca.

“É emblemático que 111 dos menores abusados ​​tenham sido vítimas de Maciel, de uma de suas vítimas ou de uma vítima de suas vítimas”, diz o relatório da Legião, que se refere explicitamente a “cadeias de abuso”. Para entender os elos dessas cadeias que remontam principalmente ao fundador, o ex-legionário Escobar fala das vítimas de abuso em termos de gerações. “Há vítimas de primeira geração, de segunda e de terceira”, comenta.

José Antonio Pérez Olvera, um advogado mexicano de 80 anos que esteve entre os primeiros legionários a denunciar abertamente Maciel (em 1997), explica que aqueles que sofreram abuso por parte dele costumavam ser recompensados ​​com cargos de poder. “Havia uma característica comum às vítimas de Maciel que não falavam, e era que ele as colocava como superiores das casas ou seminários da Legião”, diz. Foi o caso de Fernando Martínez, de quem Pérez Olvera se lembra pelos abusos “excessivos” que sofreu nas mãos do fundador da ordem durante os anos 50, em um seminário em Roma.

Martinez foi vítima e se tornou algoz. As acusações de pedofilia que acumulou ao longo de sua jornada dentro da Legião (uma investigação interna reconhece pelo menos três denúncias entre 1969 e 1990 em diferentes partes do México, uma delas por abusar de um menino de quatro a seis anos) não o impediram de continuar ocupando posições de poder. Seu último cargo foi no Instituto Cumbres, em Cancún, onde passou a diretor em 1991. Dois anos depois, a Legião o transferiu para Salamanca, na Espanha, depois que algumas mães o acusaram de abusar de suas filhas.

“Eles sabiam que se estuprassem nada lhes aconteceria porque tinham o respaldo de toda a instituição”, explica Ana Lucía Salazar, apresentadora de rádio mexicana, 36 anos, que em maio do ano passado, quase três décadas depois dos fatos, relatou em redes sociais que tinha sido estuprada por Martinez quando era estudante do Instituto Cumbres em Cancun. Sua acusação revelou o caso publicamente, já que até então havia sido tratado internamente na congregação. Quando tuitou o nome e a foto do padre, Salazar soube por ex-companheiros de Martinez que ele também tinha sido vítima de pedofilia. "Alguém que sofreu abuso de Maciel abusa de mim", disse ela. “Isso aparece em uma das cartas dos primeiros a denunciar. Eles são vítimas da década de 40, nós, da de 90.”

A psicóloga mexicana Amaya Torre, especializada em abuso sexual, explica que a pedofilia pode ser transgeracional, sobretudo quando ocorre em certas condições. “Repete-se de geração em geração, porque o adulto é abusado, não cuidaram dele e ele não sabe como cuidar dos outros”, diz. Entre os fatores que levam a reproduzir esse comportamento, o “grande câncer "é o segredo, o silêncio, afirma: “Se não se fala disso, a vítima normaliza, acredita que é assim que o mundo funciona e, quando cresce, faz o mesmo". Assim funcionava o mundo literalmente dentro da Legião, que até alguns anos atrás obrigava seus membros a fazerem votos em que se comprometiam a “nunca criticar de fora atos da administração ou a pessoa de qualquer diretor ou superior pela palavra, escritos ou qualquer outro meio”, segundo explica o sociólogo especializado em religiões Bernardo Barranco, em artigo publicado em 2007.

O papa João Paulo II em uma foto com Marcial Maciel e padres da Legião de Cristo no Vaticano em 2004.
O papa João Paulo II em uma foto com Marcial Maciel e padres da Legião de Cristo no Vaticano em 2004. Tony Gentile (REUTERS)

O rompimento desse silêncio nos últimos anos permitiu a ex-legionários desvendar as cadeias de abuso e cumplicidade dentro da congregação. Isso aconteceu em março do ano passado, quando a Justiça italiana condenou o padre mexicano Vladimir Reséndiz a sete anos de prisão por abusar de duas crianças. Cristian Borgoño, um ex-legionário que foi ordenado sacerdote junto com ele, lembra que, após a sentença, alguns ex-companheiros lhe contaram que Reséndiz também havia sido abusado por um superior enquanto estudava no seminário de Ajusco, na Cidade do México, no início dos anos 90.

Borgoño é um dos fundadores do Legioleaks, um grupo do Facebook criado por ex-legionários para denunciar casos de abuso sexual dentro da congregação e discutir a pedofilia clerical. Borgoño atribuiu os abusos sofridos por Reséndiz ao padre espanhol José María Sabín, reitor por 17 anos da Universidade Anahuac Mayab, de Yucatán, uma das instituições da ampla rede educacional da congregação, e que no final de 2014 anunciou repentinamente que abandonaria a Legião de Cristo e o sacerdócio e retornou à a Espanha, sem explicar os motivos.

A explicação talvez possa ser encontrada na Justiça de outro país. Em 2016, um ex-seminarista entrou com uma ação por abuso sexual nos Estados Unidos contra José María Sabín, Marcial Maciel e Luis Garza Medina, um padre mexicano que era considerado o braço direito de Maciel e arquiteto da poderosa estrutura financeira da Legião de Cristo. O abuso denunciado na ação norte-americana, à qual EL PAÍS teve acesso, se situa no mesmo cenário e na mesma época em que Reséndiz tinha sofrido abusos, segundo seus ex-colegas: o seminário de Ajusco no início da década 90. Segundo o documento, antes de ir à justiça, o demandante relatou o que aconteceu à própria Legião, em 2014: o mesmo ano em que Sabín abandonou tudo e partiu para seu país. Os Legionários foram consultados por este jornal sobre as denúncias contra seus membros antigos e atuais, mas não responderam à petição.

Nesta quarta-feira, 8 de janeiro, a Justiça italiana confirmou a sentença contra o ex-legionário mexicano Vladimir Reséndiz por violação de dois menores em 2008, quando era diretor de um seminário da Legião de Cristo no norte da Itália. “Quando um padre abusado tem uma posição de poder, ele repete o mesmo padrão e abusa daqueles que estão sob sua responsabilidade, como seus superiores abusaram dele”, diz Escobar enquanto analisa os rostos de seminaristas em fotografias antigas. “Na Legião, eles te preparam para ser abusado.”

Uma enxurrada de denúncias

Todas as noites, quando as luzes do seminário de Ajusco, na Cidade do México, se apagavam, o padre Antonio Rodríguez Sánchez andava entre as camas dos adolescentes, recorda Bernardo –nome fictício. Depois de algumas voltas, com um roçar na cabeça indicava ao escolhido que deveria acompanhá-lo até seu quarto. Bernardo via tudo de sua cama, mas não sabia o que acontecia depois, até a noite em que sentiu que lhe tocavam na cabeça. Era 1996 e tinha 12 anos quando o reitor da escola o estuprou, de acordo com a cena que descreve em uma denúncia que enviou às autoridades da Igreja mexicana em dezembro, à qual o EL PAÍS teve acesso.

A lembrança daquela noite o seguiu até Salamanca, na Espanha, onde continuou seus estudos. Lá, de acordo com sua denúncia, revelou a seu superior, o então noviço William Brock, o que tinha acontecido, mas o que recebeu em troca foi uma passagem para o México e 100 dólares: os legionários o removeram da ordem e o enviaram de volta.

A revolta de algumas vítimas antes do relatório divulgado pela Legião de Cristo em dezembro, que o consideram insuficiente e uma tentativa de maquiar os fatos, provocou uma enxurrada de novas denúncias – como a de Bernardo– que estão chegando à Nunciatura, segundo confirmou a este jornal o representante do Vaticano no México, Franco Coppola. Os nomes de Rodríguez Sánchez e Brock, segundo Coppola, são dois de uma lista de padres a serem investigados.

 

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