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Hidroxicloroquina, tratamento experimental e arma na “guerra cultural” de Bolsonaro e Trump

Medicamento, pesquisado em todo o mundo para tratar Covid-19 e defendido pela Casa Branca, se tornou munição de grupos bolsonaristas contrários ao isolamento social. Mandetta aponta riscos de efeitos colaterais

Bolsonaro, que na TV defendeu o uso da hidroxicloroquina contra o coronavírus.
Marina Rossi

Cientistas do mundo inteiro correm contra o relógio em busca da cura e de uma vacina para o novo coronavírus. Por enquanto, nada de definitivo no front, a não ser tratamentos experimentais, alguns deles considerados promissores, mas ainda sem estudos em escala suficiente para serem considerados uma recomendação geral. Um deles é uso de cloroquina ou hidroxicloroquina, drogas para o combate da malária, artrite e lupus, em pacientes com Covid-19. No Brasil —e nos EUA— o tema não é apenas científico: virou pólvora para o embate político e arma na “guerra cultural” do países polarizados. Tanto Jair Bolsonaro como Donald Trump resolveram se transformar em defensores de primeira linha das substâncias, mesmo que a parte técnica dos Governos que comandam não endossem as recomendações com a mesma ênfase. A maior preocupação do especialistas, lá como aqui, é que a divulgação precoce do tema leve à automedicação ou ao uso indiscriminado antes que todos os riscos estejam mapeados.

No caso do Brasil, o presidente Jair Bolsonaro, que é estritamente contrário às medidas de isolamento social contra a disseminação do vírus, tem insistido no tema e já dá como certo o sucesso no uso da droga para tratar a doença. Em pronunciamento em rede nacional nesta quarta-feira, o presidente afirmou que realizou um acordo com o primeiro-ministro da Índia, Narendra Modi, para que o Brasil continue recebendo matéria-prima para a produção da hidroxicloroquina. “De modo a a podermos tratar pacientes da Covid-19, bem como malária, lúpus e artrite”, afirmou. Do outro lado do debate, há um grupo de cientistas e médicos, incluindo o ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta, que pedem cautela e tentam acelerar as pesquisas para chegar a uma conclusão mais segura sobre o uso dessas drogas nesta pandemia.

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Além da cloroquina, o que está sendo testado contra o coronavírus
En situaciones críticas, un médico está obligado a utilizar todos los medios a su alcance para salvar al paciente.
Corrida mundial para testar dois medicamentos contra o coronavírus

Mandetta vem afirmando que é necessário mais tempo de pesquisa sobre o medicamento, embora já tenha liberado a substância para tratamentos de pacientes em estado avançado e médio da doença. Via de regra, médicos no Brasil estão autorizados a prescrever a cloroquina e a hidroxicloroquina para pessoas com coronavírus contanto que haja consentimento formal do paciente. Nesta quarta, o ministro novamente ponderou que a substância pode trazer efeitos colaterais ainda desconhecidos, especialmente em idosos e naqueles que não realizaram teste para a Covid-19 e podem estar com outras doenças. “Será que vai proteger ou será que eles [idosos] podem ter arritmia cardíaca, precisar de CTI [Centro de Terapia Intensiva] e ter enfarte agudo do miocárdio?”, questionou. O ministro informou ter pedido ao Conselho Federal de Medicina que se posicione sobre a eficácia ou não da substância até 20 de abril.

No Brasil, há dois estudos em curso sobre a cloroquina e a hidroxicloroquina, medicamentos análogos, indicados para o tratamento de malária, reumatismos e lúpus, dentre outras doenças. Um deles é o da Coalização Covid Brasil, coordenado pelo Hospital Albert Einstein, Sírio Libanês HCor e BRICNet, rede que realiza estudos na área de medicina intensiva. O outro é coordenado pela Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz) e, embora ainda não tenha sido concluído, resultados preliminares apontam que a taxa de morte de quem usou a cloroquina no tratamento é a mesma daqueles que não usaram. Ambos os estudos estão sendo acompanhados pelo Ministério da Saúde e fazem parte de um conjunto de 9 pesquisas em curso sobre tratamentos para a doença.

Algumas publicações internacionais já apontam, no entanto, que a droga poderia ser capaz de atuar contra o coronavírus, impedindo sua replicação no organismo, de acordo com documento da Anvisa. O mesmo documento pondera, entretanto, que a margem entre a dose terapêutica e a dose tóxica da droga é estreita. Por isso, estudos conclusivos ainda são necessários. “Não sabemos se há um grupo de maior risco [às adversidades do medicamento], por exemplo”, afirma Antônio Carlos Lopes, presidente da Sociedade Brasileira de Clínica Médica e professor titular da Escola Paulista de Medicina. “Mas eu nunca vi nenhum efeito colateral. Prescrevo há 40 anos esse remédio e nunca registrei nenhuma adversidade”. Mas Denizar Vianna, secretário de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos em Saúde, do Ministério da Saúde, ressaltou durante entrevista coletiva que o principal efeito colateral de ambas as drogas é a possibilidade de causar arritmia cardíaca. “O coração é uma bomba que depende da ativação de um sistema elétrico próprio. Esse medicamento pode produzir um prolongamento de uma dessas fases elétricas do coração e propiciar um ambiente favorável a uma arritmia que pode ser potencialmente fatal”, afirmou nesta semana.

Apesar da ausência de conclusões, o Governo já vem movendo suas peças para aumentar a produção do medicamento, evitar a automedicação e garantir seu abastecimento. No dia 20 de março, a cloroquina e a hidroxicloroquina passaram a necessitar de receita médica em duas vias para serem compradas nas farmácias. A medida valerá especialmente para que os pacientes que já fazem uso da droga não fiquem desassistidos caso haja uma procura em massa nas farmácias. Paralelamente, os laboratórios químicos das Forças Armadas anunciaram que estão ampliando a produção da cloroquina podendo chegar à fabricação de 500.000 compridos por semana. E o Ministério da Saúde já anunciou a distribuição do remédio para os Estados. De acordo com o secretário da Saúde de São Paulo, José Henrique Germann, o Estado recebeu 200.000 comprimidos que já foram distribuídos aos hospitais.

Médicos ligados a opositores no alvo

Apesar do empenho mundial em busca de conclusões científicas sobre a medicação, Bolsonaro segue usando como munição política a possibilidade de haver um tratamento para a doença. “Há 40 dias venho falando do uso da hidroxicloroquina no tratamento do COVID-19. Sempre busquei tratar da vida das pessoas em primeiro lugar, mas também se [sic] preocupando em preservar empregos. Fiz, ao longo desse tempo, contato com dezenas médicos e chefes de Estados de outros países”, escreveu o presidente, nesta quarta-feira, em sua conta no Twitter. “Cada vez mais o uso da cloroquina se apresenta como algo eficaz. Dois renomados médicos no Brasil se recusaram a divulgar o que os curou da COVID-19. Seriam questões políticas, já que um pertence a equipe do Governador de SP?”, disse, em referência à gestão de seu oponente político, João Doria (PSDB).

Os dardos lançados pelo presidente tinham dois alvos bem claros. Trata-se de duas das maiores sumidades médicas do país, Roberto Kalil Filho, cardiologista do Hospital Sírio Libanês, e o infectologista David Uip, coordenador do Centro de Contingência do Coronavírus de São Paulo. Ambos recém-curados do coronavírus. Kalil Filho recebeu alta nesta quarta-feira depois de passar 10 dias internado. No mesmo dia, ele afirmou à rádio Jovem Pan que usou a hidroxicloroquina, depois que um dos médicos que o tratava propôs seu uso. Ele ponderou, no entanto, que a droga foi apenas uma das que ele usou para se tratar, juntamente com outras, e que, não pretende, com isso, influenciar o tratamento de ninguém.

A declaração de Kalil alavancou ainda mais as provocações contra David Uip, que já vinha sendo pressionado a dizer se havia feito uso do medicamento. Retornando ao trabalho nesta semana após 15 dias afastado, e sabendo que era sobre ele a publicação de Bolsonaro no Twitter, Uip se defendeu. “Presidente, respeite o meu direito de não revelar o meu tratamento”, afirmou, durante entrevista coletiva nesta quarta-feira em São Paulo. “Não há nenhuma importância no que eu tomei ou deixei de tomar. “O que é importante é que eu não me automediquei. O resto é absolutamente pessoal”.

Uip, que chegou a ser tratado por Kalil antes que o cardiologista adoecesse, afirmou que não revelaria seu tratamento, um direito que tem, como paciente. Nas redes sociais chegaram até mesmo a publicar uma suposta receita médica de cloroquina emitida pela clínica de Uip a um paciente. O médico confirmou a veracidade do documento à Rádio Gaúcha, afirmando que a receita teria sido vazada por alguém do seu consultório. Na coletiva, no entanto, ele afirmou que tomará “as providências legais e adequadas a essa invasão da minha privacidade”.

Seja como for, o assunto movimenta torcidas virtuais contra e a favor de Bolsonaro, ou do medicamento, e isso, por si só, não é um efeito colateral desprezível no modus operandi bolsonarista. Nos EUA, analistas políticos argumentam que Trump cumpre seu roteiro de sempre: se agarrar em uma visão “otimista” e “antissistema”, dessa vez em relação à pandemia. No caso de as drogas comprovadamente se mostrarem efetivas, o presidente dos EUA poderá dizer que se antecipou aos especialistas “do sistema”. Caso não dê certo, o ocupante da Casa Branca tem experiência em apenas mudar o foco da conversa e ignorar a campanha anterior. Não seria a primeira vez que Bolsonaro seguiria seu script.

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