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UE suspende financiamento da OMS no Congo por abusos sexuais de 83 mulheres durante surto de ebola

O bloco exige garantias de punições e mecanismos de proteção depois das denúncias de coerção e estupro que teriam sido cometidos por trabalhadores humanitários

Congo Ebola abusos sexuales
Um trabalhador humanitário descontamina um de seus colegas em um centro de tratamento de ebola em Beni (RDC) em 8 de outubro de 2019.Zohra Bensemra (Reuters)
José Naranjo

A Comissão Europeia suspendeu temporariamente o seu apoio financeiro aos programas da Organização Mundial da Saúde (OMS) na República Democrática do Congo (RDC), revelou a Reuters nesta quinta-feira. A medida, adotada no dia 7 de outubro, foi tomada depois da divulgação no mês passado de investigação interna da própria OMS realizada por órgão independente que revelou que pelo menos 83 trabalhadoras contratadas durante a epidemia de ebola de 2018-2020 no nordeste do país, 25% delas pela OMS, sofreram abusos sexuais, coerção e estupro por parte de seus superiores.

A Comissão Europeia comunicou no dia 7 de outubro essa decisão, que só afeta os programas da OMS em curso na RDC, mas não em outros países, por meio de carta dirigida à agência das Nações Unidas na qual manifesta a sua “enorme preocupação” com a “magnitude das conclusões” reveladas pelo inquérito. O montante afetado chega a 20,7 milhões de euros (136 milhões de reais), segundo a Reuters. “Esperamos que nossos parceiros tenham mecanismos sólidos para impedir esses incidentes inaceitáveis, bem como para agir de forma decisiva em tais situações”, expressou a Comissão Europeia à agência de notícias.

As autoridades do bloco europeu também pediram à OMS que obtenha garantias de que as vítimas receberam proteção e foram indemnizadas; detalhes do processo de recrutamento de pessoal realizado pela OMS no Congo, incluindo verificações de antecedentes; comprovação das ações realizadas para evitar que os supostos autores de abusos sejam recontratados pelas Nações Unidas ou por organizações humanitárias; e uma revisão independente sobre as responsabilidades dentro da OMS “pela negligência no tratamento de denúncias e evidências”.

A Comissão Europeia deu à OMS 30 dias para uma resposta e depois decidirá no prazo de um mês se retoma os pagamentos a esta agência da ONU ou, pelo contrário, confirma a suspensão do seu financiamento por mais 30 dias. Enquanto isso, não transferirá recursos para nenhuma nova atividade da organização mundial de saúde na RDC.

Em setembro, após a publicação dos resultados da investigação interna, a OMS reconheceu que 21 de seus empregados na RDC eram suspeitos de ter cometido esses abusos sexuais, extorsões e estupros, e admitiu que havia outros 62 possíveis envolvidos. Por tudo isso, o diretor-geral da OMS, dr. Tedros Adhanom Ghebreyesus, pediu desculpas às vítimas, admitiu as falhas no sistema de contratação e controle e anunciou que criaria mecanismos para evitar que isso volte a acontecer.

Na semana passada, a OMS divulgou um plano de reformas internas para impedir esse tipo de abuso sexual e coerção entre o pessoal contratado para emergências humanitárias, o que vai implicar, segundo a própria organização, “uma profunda transformação” na forma de a OMS proceder a respeito. A dra. Gaya Gamhewage, diretora da OMS para prevenção e resposta à exploração sexual, abuso e assédio, declarou na semana passada que a agência encaminhou as acusações de estupro às autoridades nacionais congolesas e que remeteu as 83 denúncias de abusos aos investigadores das Nações Unidas em Nova York, para a adoção de medidas.

No entanto, na opinião da organização AIDS-Free World, essas decisões são insuficientes. Paula Donovan, codiretora desta organização que luta contra a impunidade em casos de abuso sexual de empregados das Nações Unidas, afirmou, com base na publicação desse plano que, na realidade, a OMS não está buscando como deveria a maioria dos supostos perpetradores. “Este é um grande retrocesso”, disse Donovan em um comunicado, “a OMS está tratando dezenas de supostos crimes violentos cometidos por seu próprio pessoal e altos funcionários como meras infrações nas normas da ONU. Se os Governos permitem que as Nações Unidas se safem, será uma sólida vitória para a impunidade na ONU. Todo o processo reforça a falsa ideia de que o pessoal da ONU e altos funcionários estão acima da lei”, disse.

A dra. Gamhewage disse à Reuters no início desta semana que mais mulheres apresentaram novas denúncias depois da publicação do relatório no mês passado, que inclui, por exemplo, o suposto estupro de uma garota menor de 14 anos por um motorista da OMS. “Quanto mais investigamos, mais casos aparecem (...). Isso é um sinal de que os sistemas que gostaríamos de ter estão começando a funcionar. Ouvimos pela rede interna da agência que há mais queixas em Goma”, disse a alta funcionária. “O relatório da comissão independente e os depoimentos das vítimas e sobreviventes são uma mensagem para todas as agências das Nações Unidas, não apenas para a OMS, que nos diz que algo está errado no sistema (...) estamos todos chocados”, concluiu.

O primeiro aviso dos fatos gravíssimos que ocorreram no Congo durante a epidemia de ebola de 2018-2020 ocorreu há mais de um ano, em setembro de 2020, quando uma investigação publicada no The New Humanitarian revelou que mais de 50 mulheres haviam sido exploradas sexualmente por trabalhadores da OMS e de outras organizações humanitárias. De acordo com as mulheres que fizeram as denúncias, os homens que trabalhavam para essas organizações propunham manter relações sexuais em troca de trabalho ou rescindiam os seus contratos se elas recusassem. Algumas delas, que trabalhavam como cozinheiras, faxineiras ou agentes de saúde, foram agredidas em escritórios e hospitais e até trancadas em quartos onde foram estuprados. Pelo menos duas delas ficaram grávidas.

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Sobre la firma

José Naranjo
Colaborador de EL PAÍS en África occidental, reside en Senegal desde 2011. Ha cubierto la guerra de Malí, las epidemias de ébola en Guinea, Sierra Leona, Liberia y Congo, el terrorismo en el Sahel y las rutas migratorias africanas. Sus últimos libros son 'Los Invisibles de Kolda' (Península, 2009) y 'El río que desafía al desierto' (Azulia, 2019).

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