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Lilia: defender a fauna aquática da Amazônia é defender o mundo

Para Lilia Isolina Java Tapayuri, proteger o boto-cor-de-rosa é sagrado. Esta é a décima e última história da série 'Rainforest Defenders", que apresenta líderes que lutam pela preservação da natureza

Lilia é uma mulher indígena da etnia Tikuna da Amazônia colombiana que, se dedica à proteção dos seres vivos que habitam os rios.Vídeo: Pablo Albarenga

A exuberância vital da Amazônia na tríplice fronteira da Colômbia com o Peru e o Brasil tem uma qualidade estática. Destila uma aparente harmonia, embora esconda múltiplas tensões em sua tranquilidade. Aqui, entre os meandros de seus abundantes afluentes, que descem carregados de matéria orgânica, onde uma biodiversidade excepcional prolifera na inundação de suas águas lentas, nada o boto cor-de-rosa da Amazônia. Desde a antiguidade, este mamífero aquático ocupa um lugar sagrado nas cosmologias indígenas, como o faz em muitos cantos da imensa bacia amazônica.

Também para Lilia Isolina Java Tapayuri, líder comunitária da etnia Cocama, na reserva Tikuna-Kokama-Yagua, o boto cor-de-rosa é sagrado. Ele ocupa uma parte central em sua vida e trajetória profissional que a levou a ter um papel importante na conservação da fauna fluvial deste recanto da selva amazônica.

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Lilia, de 35 anos, nasceu na comunidade de San Francisco, a poucos quilômetros a noroeste de Puerto Nariño, no rio Loretoyacu, um afluente do Amazonas. A fauna do rio a atrai desde pequena, que marcou tanto o significado de sua espiritualidade, quanto sua vida profissional.

Na cosmovisão dos povos indígenas do Trapézio Amazônico, em um mundo dominado pela água, o boto cor-de-rosa reina: uma criatura esguia, porém enigmática, inteligente e cobiçada. Nos últimos tempos, o boto tornou-se um ícone das iniciativas que lutam para preservar o ecossistema, que alcançaram também esta remota região amazônica.

Estes indígenas, reassentados longe de seu território de origem no interior da floresta pela exploração da seringueira no século XIX, permaneceram junto ao rio, mesmo quando os preços da borracha despencaram e a escravidão dos índios foi abandonada. Com a chegada dos missionários messiânicos em meados do século XX, abandonaram suas casas comunais, consideradas promíscuas pelos ministros da igreja, e reassentadas em casas retangulares unifamiliares, com cortinas separatórias, paredes de madeira e telhados de zinco.

Apesar da evangelização, muitos preservaram em seu sincretismo fragmentos de seu universo místico ancestral, que divide o mundo em três níveis – água, ar e terra – e no qual a fauna aquática desempenha um papel central. E é neste contexto que, para Lilia, a conservação e defesa da fauna fluvial, como o peixe-boi, o boto, a lontra e o jacaré, significa não apenas defender a floresta e o ciclo biológico do ecossistema, mas também os estilos de vida dos povos indígenas e sua espiritualidade.

Mas de toda a rica fauna aquática amazônica, é o boto cor-de-rosa quem ocupa um lugar central no imaginário indígena. Lilia diz que ele aparece em rituais de celebração como o “pelazón”, um doloroso rito de passagem que consiste em arrancar todos os fios de cabelo das meninas, quando entram na puberdade. O boto aparece à comunidade como uma pessoa, sempre usando atributos humanos como um chapéu, um relógio, um cinto, ou sapatos. “Nessas reuniões”, explica Lilia, “o único capaz de determinar qual das pessoas presentes é um boto, é o xamã”. A pessoa misteriosa, que assiste a estes ritos festivos disfarçada, desaparece nas primeiras horas da manhã, deixando quase nenhum vestígio.

“Um dia o xamã disse aos donos da festa: se vocês não acreditam que ele não é uma pessoa, mas um animal, que é a Yakuruna, a mãe das águas, vamos fazê-lo beber toda a chicha, vamos embriagá-lo”. E a festa começou, e as meninas o fizeram dançar e lhe deram chicha até que se embebedou. Não conseguiu chegar ao rio, e adormeceu na margem. E quando brilharam os primeiros raios de sol, o homem começou a se transformar em um golfinho. E então o xamã lhes disse: vejam, o chapéu daquele boto é uma raia; o relógio é um caranguejo; o cinto é uma jiboia; e os sapatos são peixes. E foi assim que eles descobriram a Yakuruna."

“E a partir daquele dia descobriram também que as mulheres que viviam nas margens dos rios haviam desaparecido”, continua Lilia com olhos brilhantes e a voz um pouco quebrada pela emoção da história. “Elas se encantaram e como moravam perto da água, a Yakuruna as levou embora. Elas haviam se apaixonado pelo boto. Algumas engravidaram e deram à luz a bebês com forma de boto.”

Lilia tem uma relação muito poderosa com a Yakuruna, e hoje dedica sua vida à defesa diária de um ecossistema submetido a múltiplos e contínuos testes de pressão. Felizmente, foi possível controlar as ameaças da pesca ilegal, que anos atrás era muito agressiva devido à presença de barcos refrigerados, em sua maioria do Peru, do outro lado do rio, e métodos de pesca não tradicionais que dizimavam a população de peixes com muita rapidez.

Há alguns anos, uma balsa foi instalada no Lago Tarapoto, para controlar a entrada e saída de canoas, o que tem sido decisivo para o trabalho de conservação deste ecossistema. Dezenas de espécies protegidas estão sendo monitoradas, e Lilia, com coragem e autoridade inquestionável, dirige as operações da balsa, de onde é feita a contagem das populações de diferentes espécies de peixes e mamíferos aquáticos, como lontras, peixes-boi e golfinhos.

Uma mulher no caminho de homens

Mas a trajetória de Lilia, como o de tantas outras mulheres indígenas, é de luta e determinação constantes. Em meio a um patriarcalismo dominante, em um mundo em que a cosmovisão ancestral coloca os homens na água e as mulheres na terra, o domínio masculino tende a ser absoluto. Essa realidade exige que as mulheres tenham ousadia adicional, se quiserem trabalhar de igual para igual com os homens.

E foi isso que Lilia conseguiu graças à sua relação emocional e espiritual com os botos cor-de-rosa. Seu fascínio a levou a colaborar, ainda quando menina e com o apoio do pai, no cuidado de alguns espécimes. Através de sua sensibilidade especial no cuidado dos animais, Lilia encontrou a porta para aquele mundo, historicamente dominado, material e espiritualmente, pelo homem.

É notável o carinho e a ternura com que Lilia acolhe e mima em seus braços um peixe-boi estressado e desconsolado, que foi encontrado perdido por alguns pescadores. Lilia conta que, devido às mudanças nas condições climáticas e à diminuição do fluxo dos rios, as margens do rios estão mais secas, criando um ambiente que facilita o aparecimento de peixes-boi bebês encalhados, longe do alcance de suas mães.

Lilia abraça e alimenta o pequena peixe-boi com dedicação e carinho. A cena revela até que ponto a relação com a natureza e os seres vivos, não tão diferente dos humanos, é uma questão de empatia e sensibilidade, duas qualidades raras no universo masculino.

Como o peixe-boi, o boto é um animal inteligente e poderoso na água, mas fora dela é um ser absolutamente vulnerável. Ele requer hidratação contínua, carícias para aliviar o estresse extremo, cuidados com suas pequenas e poderosas pupilas.

Foi através desses cuidados que Lilia achou seu lugar no mundo. Seu avô, que já se dedicava a catalogar e proteger a população de botos, apreciou a devoção com que Lilia olhou para o animal enquanto ajudava a manter sua cauda imobilizada. Essa atividade não requer força, mas ternura. Foi esse poder de acalmar os botos que fez Lilia crescer dentro da Fundação Omacha e se tornar a coordenadora da área de fronteira de Puerto Nariño.

Ela compartilha com Aldo Curico, seu marido, essa vocação para o cuidado. Lilia e Aldo moram juntos há 13 anos e juntos passam seus conhecimentos para os três filhos, além de compartilhar o projeto de conservação. Lilia se uniu a Aldo como parceira na luta ambiental e na proteção do território. Ele conhece as áreas de reprodução da fauna aquática, e a acompanha nos longos dias dedicados ao cuidado dos animais.

As atividades permitem manter sua família, e Lila pode conciliar seu papel de mãe e seu desempenho profissional como líder ambiental, ao mesmo tempo que incentiva outras mulheres indígenas a fazerem o mesmo e se unirem à luta para conservar a vida selvagem e prevenir mudanças climáticas, que já afetam o território.

Mas a luta das mulheres indígenas aqui é longa e difícil. Como uma área de enorme beleza natural, a terra Tikuna foi recentemente sujeita à exploração turística, o que trouxe uma certa prosperidade, sem dúvida, mas ao mesmo tempo levou a uma proliferação de atividades ilícitas de todos os tipos. Entre as mais dolorosas e perversas, estão o tráfico de crianças, prostituição infantil e de jovens indígenas adolescentes, agredidas por turistas e outros tipos inescrupulosos.

No ano passado, foram detidos em Puerto Nariño vários indivíduos envolvidos na exploração sexual de meninas e adolescentes colombianas, peruanas e brasileiras. A porosidade da fronteira e a facilidade de mudar de jurisdição nacional em 15 minutos de canoa ao atravessar o rio, favorece a impunidade do crime.

O mesmo é válido para o tráfico de madeira obtida ilegalmente. Não parece ser uma atividade em grande escala, mas barco após barco, a madeira desce o Amazonas, atravessa fronteiras, quebra regulamentos. Ou com a pesca do pirarucu, um saboroso peixe amazônico, cuja caça é proibida na Colômbia durante alguns meses, mas não no Brasil ou no Peru. Como resultado, o peixe acaba sendo consumido também deste lado da fronteira, tornando praticamente impossível determinar sua nacionalidade.

A incontrolável força da covid-19

Mas a covid-19, que chegou com toda a sua força incontrolável à Amazônia, trouxe ainda mais incerteza a essa dinâmica já complexa. Mais de 350 mortes e quase 15.000 infectados (dados de 30 de julho) são o prelúdio do que pode acabar acontecendo no território fronteiriço onde moram Lilia e sua família.

Além disso, a restrição da mobilidade também reduziu os controles ambientais sobre os afluentes. Agora, o desafio como comunidade proteger-se para evitar a propagação do vírus. “No início foi um pesadelo para nós, principalmente ouvir que era uma doença que não tinha cura, mas nos tratamos com base nas folhas e cascas das plantas”, diz Lilia, apegada à fé no saber ancestral e espírito de luta dessas comunidades indígenas para as quais, desde os tempos da conquista, resistir é existir.

Apesar das inseguranças deste território distante, Lilia está determinada a defender a floresta e o mundo aquático que a habita, dia após dia. Após alguns dias, ela leva o pequeno peixe-boi para Leticia, capital do departamento do Amazonas na região fronteiriça, onde há melhores instalações para seus cuidados.

Os xamãs dizem que entrar na água é como levantar uma cortina, e cruzar para o outro lado. É como atravessar a porta para outro mundo. E Lilia sabe que este mundo está se afastando destes territórios a uma velocidade já inalcançável.

Mas ela também sabe que ainda há uma oportunidade para que a água, a vida selvagem e a floresta tropical preservem uma harmonia universal que era, no passado, sua única natureza. Essa é sua luta.

Este artigo pertence a uma série sobre defensores florestais que começou no Brasil e no Equador e agora continua na Colômbia. É um projeto do openDemocracy/democracyAbierta e foi realizado com o apoio do Rainforest Journalism Fund do Pulitzer Center.

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