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Deputados do Chile aprovam abertura de processo de impeachment de Piñera

Caberá agora ao Senado, onde a oposição terá mais dificuldade para reunir os votos pela destituição do mandatário, analisar a acusação por supostas irregularidades na venda de um projeto de mineração, reveladas pelos ‘Pandoras Papers’

Sebastián Piñera, presidente do Chile, chega ao palácio de La Moneda, em Santiago, nesta segunda-feira.
Sebastián Piñera, presidente do Chile, chega ao palácio de La Moneda, em Santiago, nesta segunda-feira.Esteban Felix (AP)
Rocío Montes

A Câmara de Deputados do Chile aprovou na madrugada desta terça-feira, por 78 votos a 67, com 3 abstenções, a abertura de um processo de impeachment contra o presidente Sebastián Piñera, cujo mandato a oposição quer cassar por causa de supostas irregularidades na venda de um projeto de mineração nas Ilhas Virgens Britânicas, revelado nos Pandora Papers. Em uma exaustiva e peculiar jornada de 22 horas de duração, o deputado socialista Jaime Naranjo passou 15 delas lendo uma apresentação de 1.300 páginas, com o único objetivo de prolongar a sessão até a madrugada. É que o voto decisivo cabia a um deputado que cumpria quarentena por covid-19 até a meia-noite. Em uma manobra de obstrução parlamentar nunca vista no Congresso, que goza de pouca credibilidade popular, o longo discurso de Naranjo provocou tanto interesse quanto o seu resultado.

Esta é a segunda vez que o Congresso chileno discute a destituição de Piñera —a primeira teve relação com a onda de protestos de 2019. Agora caberá ao Senado julgar a acusação, e lá a oposição terá mais dificuldade para reunir os votos necessários. Enquanto isso, o presidente permanece no cargo, mas não pode sair do país.

A oposição a Piñera, que lidera um Governo conservador com mandato até 11 de março de 2022, trabalhou contra o relógio para que a acusação constitucional —como é chamado o impeachment no Chile— possa ser votada antes de 21 de novembro, data da eleição que escolherá seu sucessor e renovará boa parte do Congresso. Trata-se de uma campanha polarizada, em que os favoritos, de acordo com as últimas pesquisas, são o deputado Gabriel Boric (da esquerdista Frente Ampla, em aliança com o Partido Comunista) e o líder do Partido Republicano, José Antonio Kast (da direita radical, que não participa da atual coalizão de Governo), devem disputar um segundo turno em 19 de dezembro. Cada novo impulso vale em meio a uma campanha competitiva, no qual forças antagônicas disputam cada voto, e por isso a destituição do mandatário representaria um golpe inequívoco e profundo para o seu setor político. De acordo com os cálculos de analistas, entretanto, será difícil que a oposição alcance o quórum necessário para aprovar a acusação no Senado.

Os meios de comunicação chilenos exibiram ao vivo a sessão da Câmara, onde os deputados da oposição incentivaram por horas Naranjo, de 70 anos, que só bebeu água, comeu passas e parou duas vezes para ir ao banheiro. “Foi um jejum que fiz pela Justiça”, disse o político sobre as horas sem comida nem descanso. Pouco antes da meia-noite, o deputado democrata-cristão Jorge Sabag chegou discretamente à sede do Parlamento, na cidade de Valparaíso, a 100 quilômetros de Santiago. O dele era um dos votos indispensáveis para assegurar a maioria, mas o deputado estava na cidade de Chillán, sua base, onde nas últimas horas fez um exame para descartar a covid-19. Sob pressão de seus colegas de partido, viajou para votar no Congresso, ignorando as autoridades sanitárias, que lhe recordaram que deveria permanecer isolado até receber o resultado do exame. Com a ajuda de outro congressista do seu partido, Gabriel Ascencio, ele burlou as autoridades sanitárias que o esperavam em frente ao Congresso para inspecionar sua situação.

Mas o interesse maior se concentrava no deputado Giorgio Jackson, coordenador político da campanha presidencial de Boric. Jackson cumpria quarentena até a meia-noite de segunda, porque havia mantido contato próximo com o candidato presidencial, contagiado por covid-19. Exatamente à meia-noite ele saiu de sua casa em Santiago e foi dirigindo até o Congresso para votar a favor da abertura do impeachment, que necessitava de 78 votos.

A publicação dos Pandora Papers, no começo de outubro, desatou uma crise política na reta final do Governo, porque reabriu um conflito que Piñera não soube fechar em sua longa trajetória pública: a difusa linha de separação entre seus negócios e a política. Mal mantendo-se à tona desde as revoltas sociais de outubro de 2019, ele terminará seu segundo mandato encurralado pelo Ministério Público, que abriu uma investigação por supostas irregularidades na venda de um projeto de mineração durante seu primeiro mandato, em 2010, conforme revelaram documentos obtidos pelo Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos (ICIJ, na sigla em inglês). A peça de acusação no processo de impeachment, um documento de 285 páginas, menciona “atos de sua Administração que comprometeram gravemente a honra da Nação e infringiram abertamente a Constituição e as leis”.

Nunca antes um presidente chileno havia sido investigado pelo Ministério Público por causa da sua função pública. Tampouco nunca no passado recente um mandatário chileno encerrou antecipadamente seu mandato —o último foi Salvador Allende, alvo de um golpe militar em 1973. A acusação abriu um debate profundo sobre a conveniência desta acusação constitucional contra Piñera. Um setor defende a necessidade de castigo político, como manifestou o candidato Boric: “Com o trabalho jornalístico internacional, soubemos que o presidente Piñera teria realizado transações em paraísos fiscais, tendo como moeda de troca um projeto nocivo ambientalmente como a mina Dominga. Não permitiremos que a máxima autoridade prejudique a honra do país”, escreveu ele no Twitter.

Mas há quem pense que, independentemente das eventuais responsabilidades do presidente Piñera que merecem ser investigadas, uma acusação constitucional em meio à maior crise política do país em décadas é uma irresponsabilidade. Sobretudo porque a lei permite que a acusação seja apresentada até seis meses depois de Piñera terminar seu mandato constitucional, em 11 de março. Seja como for, o que ocorreu nesta madrugada no Congresso foi analisado sob diferentes pontos de vista. Para parte da sociedade, tratou-se de um assunto épico. Para outra, entretanto, foi um novo momento de descrédito da classe política, que dirigentes como Kast sabem aproveitar. “Esta noite, sem lugar a dúvida, será recordada como uma das mais infames da história do nosso Congresso. Manobras políticas, enganos e falso heroísmo para justificar um ato político-eleitoral sem fundamento”, escreveu o candidato da extrema direita, já de madrugada.

Esta é uma semana em que o Congresso definirá assuntos cruciais, poucos dias antes das eleições gerais de 21 de novembro. Os congressistas, a poucos meses de concluírem seus mandatos, votarão sobre a prorrogação do estado de exceção constitucional na Araucanía e pela quarta retenção de 10% das poupanças de contingência, uma política pública que técnicos de todos os setores pedem que seja interrompida, pelo dano à outrora estável economia chilena.

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