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Opinião
Texto em que o autor defende ideias e chega a conclusões basadas na sua interpretação dos fatos e dados ao seu dispor

Por que investir em cultura faz bem à saúde e à economia

Programas de participação cultural para o bem-estar mental no país pode gerar benefícios por todos os lados: individuais, sociais, econômicos e para os trabalhadores da cultura

Performance na 34ª Bienal de Arte de São Paulo.
Performance na 34ª Bienal de Arte de São Paulo. Lela Beltrão

Imagine que você seja um dos 9,3% de brasileiros (um recorde mundial) que, ainda antes da pandemia, sofriam de ansiedade. Finda uma consulta, você levaria no bolso algumas receitas ― incluindo uma para participar de programas de encontros no museu de sua cidade.

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Se aqui pode soar estranho é o que acontece, desde 2018, no Québec, quando os psiquiatras passaram a receitar visitas ao Museu de Belas-artes de Montreal, como parte do tratamento de pacientes com diagnósticos de distúrbios alimentares a Alzheimer, de epilepsia a arritmia cardíaca, sob a coordenação do Comitê de Arte e Saúde do Museu.

O reconhecimento do impacto das artes na saúde mental não é exatamente uma novidade. Há mais de 200 anos, o médico alemão Johann Christian Reil, que cunhou o termo psiquiatria, foi descrito por ninguém menos que Goethe, seu mais famoso paciente, como um médico “capaz de observar as pessoas”, não simplesmente medicá-las. Defensor de tratamentos humanizados para os que apresentavam “personalidade fragmentada”, Reil preconizava o poder transformador da filosofia, da música e da poesia nos tratamentos.

No Brasil, Osório César ― psiquiatra, violinista, crítico de arte, interlocutor de Mario de Andrade, casado com Tarsila do Amaral e ativista político ―, foi pioneiro na sistematização dos enlaces entre psiquiatria, arte e psicanálise. Fundador da Escola Livre de Artes Plásticas, no Hospital Psiquiátrico do Juquery, lançou em 1924 seu primeiro estudo sobre a arte primitiva dos alienados, abrindo estrada para outra gigante do tema, Nise da Silveira e os que a sucederam.

Aos poucos, o Direito foi dando suas bênçãos ao casamento entre artes e psiquiatria. Em 1990, a Lei do SUS pacificou que saúde envolve as dimensões física, psíquica e social; em 2001, a Lei Paulo Delgado firmou a defesa de tratamentos integrativos, menos invasivos e de base comunitária.

Se a pandemia provocou um passo atrás ― desorganizou parte do trabalho em dos Centros de Atendimento Psicossocial (CAPS) e prejudicou contatos sociais nos Centros de Convivência ―, talvez possamos nos apoiar nela para irmos dois à frente. A perspectiva de o mundo ter uma legião de sequelados da covid-19, traumatizados de toda ordem e uma sociedade em desconfinamento abre espaço para abordagens mais inovadoras e para romper com o estigma de que sofrimento mental é picuinha.

É aqui que entra a boa notícia. Nos últimos anos, a economia vem demonstrando que investir em artes pode gerar, além de benefícios intangíveis, economias polpudas para a gestão pública. Na Dinamarca, o programa Vitaminas de Cultura promoveu, entre 2016 e 2019, a participação de desempregados com depressão, estresse ou ansiedade em atividades culturais, ― de passeios de educação patrimonial a concertos ou leitura coletiva ―, de duas a três vezes por semana, ao longo de dois meses e meio. Usando a dopamina como marcador, o programa não apenas ajudou a superar as barreiras impostas pelo sofrimento mental, como mostrou ser custo-eficiente. Enquanto custa aos cofres públicos 12 mil coroas dinamarquesas (cerca de 10 mil reais) por paciente, cada consulta com psicólogo custa 1 mil coroas e uma semana de absenteísmo na economia representa a perda de 4 mil coroas para a sociedade.

Na Austrália, primeiro país a empunhar a bandeira da economia criativa, a importância dos trabalhadores da cultura motivou a criação de programas de saúde mental voltados especificamente a esse grupo. No Reino Unido, onde a economia criativa se tornou política pública, o mesmo ocorreu com programas de promoção do bem-estar mental baseados em participação cultural, como o Arts on Prescription, tendo por facilitadores artistas da própria comunidade. Estudos empíricos demonstram que o programa se paga com a recuperação de entre 40% e 70% dos participantes, dependendo das premissas, embora sejam trabalhos ainda empíricos.

No Brasil, a discussão é tão incipiente quanto urgente. Às vésperas do lançamento de um novo relatório global de saúde mental, é improvável que o percentual de ansiosos e depressivos tenha caído no país, diante do desastre sanitário, da degringolada da economia e do acirramento das desigualdades sociais. Desenvolver programas de participação cultural para o bem-estar mental no país pode gerar benefícios por todos os lados: individuais, sociais, econômicos e para os trabalhadores da cultura, integrantes de um dos primeiros setores a sofrer com o impacto da pandemia e um dos últimos a se recuperar dela.

Ana Carla Fonseca ganhou o prêmio Jabuti por Economia da Cultura e Desenvolvimento Sustentável (2006) e é Sócia-fundadora da Garimpo de Soluções

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