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Tribuna
São da responsabilidade do editor e transmitem a visão do diário sobre assuntos atuais – tanto nacionais como internacionais

O adeus a um estadista da ciência e tecnologia brasileiro

O falecimento de Marco Antonio Raupp é uma grande perda não apenas para sua família e amigos, mas para toda a comunidade científica

Marco Antônio Raupp, ex-ministro da Ciência, Tecnologia e Inovação, em um evento no Senado, em agosto de 2012
Marco Antônio Raupp, ex-ministro da Ciência, Tecnologia e Inovação, em um evento no Senado, em agosto de 2012Marcos Oliveira (Marcos Oliveira/Ag�ncia Senado)
Daniel Gama e Colombo
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O falecimento de Marco Antonio Raupp no dia 24 de julho é uma grande perda não apenas para sua família e amigos, mas para toda a comunidade científica. A trajetória de Raupp é umbilicalmente ligada à história da ciência brasileira nas últimas décadas, e sua morte neste momento se encontra carregada de simbolismo, como se fosse parte do ocaso e da destruição pela qual passa a política científica nacional. Mas Raupp também é um exemplo de estadista que nos inspira a não desistir e a buscar caminhos para enfrentar as enormes dificuldades do contexto atual.

Tive o privilégio de atuar como assessor direto de Raupp em boa parte de seu período no comando do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) entre 2012 e 2014, acompanhando-o em inúmeras reuniões, viagens e também em momentos mais leves de reflexão ou conversas despretensiosas. Com a didática de um professor e sempre com muitas histórias pessoais, Raupp ensinou-me boa parte do que sei sobre os desafios da implementação de políticas científicas em um sistema marcado pela falta de recursos e fragmentação de instituições. Com a paciência de quem já tinha visto e vivido muita coisa, não buscava me convencer ou mudar minhas opiniões, deixando que a vivência e a experiência me mostrassem o caminho.

As características mais marcantes que guardarei dele são sua simplicidade e humanidade. Raupp portava-se com informalidade, pois sabia que seu valor estava em sua trajetória e no que ele havia feito pela ciência brasileira, e não no cargo que ocupava. O estilo despojado e simples muitas vezes deixava de cabelos em pé aqueles que teimavam em insistir que ele cumprisse a liturgia do cargo. Seu comprometimento e humildade eram as mesmas como Ministro de Estado, Presidente do INPE (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais) ou Diretor Geral do Parque Tecnológico de São José dos Campos.

Raupp sabia que a ciência é feita por pessoas e para pessoas, e que o diálogo e a comunicação são elementos fundamentais de uma política científica e tecnológica consistente e democrática. Em suas negociações e arranjos políticos, buscava sempre contemplar diferentes visões ou grupos, na certeza de que só o apoio da sociedade poderia sustentar uma política de Estado para promoção do conhecimento científico. Ouvia indistintamente e debatia com indivíduos de todas as posições sociais, cargos ou partidos políticos, sem se colocar em posição superior ou assumir que estivesse certo.

Em todo o tempo que o acompanhei, não houve cidade em que não fosse recebido com abraços e admiração. Nunca entendi como ele sempre tinha uma história que explicasse sua relação pessoal com todos os locais que visitávamos. Sua disposição era sempre a mesma, quer estivesse em outro país negociando uma cooperação científica internacional ou em Dores do Turvo (MG) para conhecer uma escola pública de destaque na Olimpíada Brasileira de Matemática das Escolas Públicas.

Desenvolver ciência e tecnologia exige, antes de tudo, investir recursos na formação de cientistas, infraestrutura de pesquisa e em projetos. Os gastos do MCTI e do Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico tiveram seu apogeu na era Raupp.

O número de bolsas de pesquisa concedidas pelo CNPq também aumentou consideravelmente, e importantes projetos foram iniciados ou impulsionados em sua gestão, como o acelerador de partículas Sirius, a Embrapii e o satélite sino-brasileiro CBERS-3. Esses investimentos geraram resultados consideráveis que formam parte do legado da gestão Raupp para o Brasil. O ano de 2013 marcou o pico do número de pedidos de patentes depositados no INPI (34 mil pedidos) e do percentual de citações de artigos do Brasil em relação à América Latina em periódicos científicos indexados pela Scopus.

A saída de Raupp do cargo de Ministro no início de 2014 marcou a interrupção de um ciclo de políticas de longo prazo e o início do declínio dos esforços do governo federal em ciência e tecnologia no Brasil. Os efeitos nefastos da desconstrução da política nacional são diversos e visíveis, e podem ser simbólica e caricaturalmente representados pelo ‘apagão’ do CNPq e de suas plataformas nos últimos dias.

Mas Raupp nunca desistiu e continuou sua batalha até o fim da vida no Parque Tecnológico de São José dos Campos. Sua trajetória é uma homenagem aos milhares de cientistas brasileiros que, diariamente, lutam contra as condições precárias, a falta de recursos e a pouca valorização das carreiras acadêmicas e científicas no país.

Com a morte de Raupp, eu perdi um mentor e amigo, e o país perdeu seu grande estadista de ciência e tecnologia justamente quando mais precisa dele. Mas o exemplo de Raupp continuará a ensinar e inspirar aqueles que defendem a ciência como caminho para a construção de uma sociedade mais culta, próspera e que não se deixa enganar por discursos vazios e oportunistas daqueles que enxergam no método científico um inimigo de suas verdades pré-fabricadas.

Daniel Gama e Colombo é doutor em economia e Mestre em Direito pela Universidade de São Paulo. Membro da carreira de Especialistas em Políticas Públicas e Gestão Governamental do Ministério da Economia. Foi Assessor Especial do Ministro de Ciência, Tecnologia e Inovação entre 2012 e 2014.

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