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Protestos em Cuba
Opinião
Texto em que o autor defende ideias e chega a conclusões basadas na sua interpretação dos fatos e dados ao seu dispor

Protesto em Cuba: chamar as coisas pelo seu nome

Informação atual é escassa e confusa, cheia de especulações. A internet foi cortada. Precisamos, certamente, que a ilha não seja contada só pelos cubanos

Um homem é detido durante os protestos em Havana, neste domingo, 11 de julho.
Um homem é detido durante os protestos em Havana, neste domingo, 11 de julho.YAMIL LAGE (AFP)

Uma viatura policial virada no meio da rua, com dois jovens negros em cima. Parecem gritar algo que vêm sussurrando a vida toda. A garganta transforma o indivíduo em cidadão, é o lugar onde confluem a ideia e o corpo, o músculo sonoro. A palavra do protesto explode na garganta, não chega à boca nem à língua e transforma a eufonia na principal categoria ideológica do discurso cívico.

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Na foto, o jovem da esquerda estende uma bandeira cubana, manchada de vermelho em uma de suas faixas brancas. Há destruição ao redor, fachadas cobertas de fuligem, tijolos, objetos e gente pobre na rua. O semáforo está verde, o que talvez explique por que a imagem continua em movimento consciência abaixo, atravessando as vias do assombro e a fúria nacional, transformando-se no emblema das manifestações gigantescas que ocorreram neste 11 de julho em toda Cuba, praticamente em cada município e cidade, ou ao menos em mais municípios e cidades do que pode recordar qualquer um que tenha vivido e fenecido sob a longa sombra do castrismo.

As pessoas não sabiam bem o que exigiam, mas tampouco precisavam saber. O que se comprovava era algo mais simples e poderoso, algo que rompe a cápsula política do autoritarismo e torna múltiplo o real, como uma precipitação de fatos longamente contidos: que se podia fazer o que sempre se disse que não se podia fazer.

Essa intervenção no espaço público põe a linguagem em seu devido lugar. “O povo unido jamais será vencido”, gritavam muitos que não tinham tempo para lançar um novo lema, e que operavam assim sobre o passado, o único território da invenção. “A rua é dos revolucionários”, diziam os funcionários do governismo, mas a palavra no ar não tem dono. Não é de quem a diz, mas sim de quem a merece, e uma ideia historicamente excludente, de consequências fascistas, encontrou pela primeira vez essa criatura em tantas ocasiões invocada e poucas vezes vista, o povo.

O presidente Miguel Díaz-Canel, em transmissão nacional, chamou à guerra civil. “A ordem de combate está dada. À rua, os revolucionários”, e deu um soco pusilânime na mesa, sem muita convicção.

O que provocou tudo isto? Há catalisadores que agem sobre uma estrutura de administração da vida social amplamente deformada: a ausência de liderança política, a crise sanitária e o aumento de mortes pelo coronavírus, a escassez galopante, a repressão, o encarceramento e a vigilância constante a dissidentes e artistas cada vez mais conhecidos fora de seus círculos trabalhistas ou afetivos, mas, sobretudo, a presença de um Estado que atua como uma corporação e a perda de valor do salário em um país dolarizado, onde o trabalho é pago em uma moeda que não serve para nada.

Em Sobre o governo privado indireto, o filósofo camaronense Achille Mbembe diz que “o fim do salário como modalidade por excelência da clientelização da sociedade e sua substituição por ‘pagamentos ocasionais’ transforma, de fato, as bases sobre as quais se convertiam até o presente os direitos, as transferências e as obrigações e, portanto, as próprias definições da cidadania pós-colonial. Cidadão agora é aquele ou aquela que possa ter acesso às redes da economia submersa e subsistir através desta economia”.

Esse é o ponto cego do conflito cubano, o que nos permite subverter a lógica midiática dos ardis políticos governamentais. A propaganda estatal acusa os manifestantes de mercenários, uma tropa de elite equipada com pedras e paus, vestida com roupas puídas, e no rosto a expressão seca e raivosa da fome. Enquanto isso, o prefeito de Miami, Francis Suárez, pede estupidamente uma intervenção militar em Cuba. Finge preocupação por quem protesta, faz política interna e dá de presente ao regime de Havana um argumento suficientemente suculento para sustentar um pouco mais o castelo de cartas da Guerra Fria. Essa intervenção inexistente, e a cartada do embargo econômico – estratégia que muito condenamos não só por ser ilegítima, mas também ineficiente – são as pedras de toque da retórica oficial.

Díaz-Canel, nesta manhã de segunda-feira, pareceu por alguns momentos dominado pelo medo. Voltou a pedir o fim do embargo, e o vocabulário típico do funcionalismo burocrata não lhe bastou para citar sem constrangimento nem solenidade Mia Khalifa, a ex-estrela pornô que dias antes havia tuitado sobre a situação sanitária na ilha. “É preciso ver aqui como, em toda esta campanha, participaram todos os youtubers e todos os influencers que puderam nas redes sociais, incluindo uma determinada artista com determinadas características que começou apoiando o bloqueio e parece que depois a pressionaram, e terminou… ehhh… dizendo que eu sou um tirano, e algumas dessas… ehhh… ehhh… alguns desses epítetos”, disse o presidente, hesitante, com sua moral comunista maculada.

Sabendo, além disso, que as pessoas que se lançaram à rua são as mesmas que veem televisão, e que não pode continuar acusando de mercenários e financiados aqueles que têm os bolsos vazios (algo que todo mundo em Cuba acha do outro, até que o acusado é você), Díaz-Canel baixou o tom: “Em nenhum momento quisemos incomodá-los, querido povo”, disse. Se assim fosse, dissimularam bem. Os protestos tiveram como alvo não só o corpo policial do castrismo e sedes do Partido Comunista e do Poder Popular, mas também foram saqueadas essas paróquias capitalistas disseminadas em cada povoado: as lojas que vendem em divisas internacionais, às quais só têm acesso quem recebe remessas do exterior e que estabelecem muito claramente quem é quem em Cuba, e a qual classe pertence.

Os batalhões da ordem se disfarçaram de paisanos e saíram para dar porrada. Esta estratégia, uma cópia dos métodos paracos utilizados na Colômbia para sufocar ou manipular protestos populares, como os que houve recentemente contra a reforma tributária do Governo de Iván Duque, bastaria por si só para revelar qual é o verdadeiro signo político da casta militar cubana. No socialismo real, a aristocracia se rege a partir de contratos ideológicos que escondem a desigualdade estrutural e disfarçam a vigência das leis do capital sob um manto épico-messiânico que muitos, em outras partes, ainda estão dispostos a comprar.

A informação atual é escassa e confusa, cheia de especulações. A internet foi cortada. Precisamos, certamente, que Cuba não seja contada apenas pelos cubanos. Que as experiências afetivas que os estrangeiros tiveram com a história da ilha se submetam a julgamento crítico, e que também submetam a escrutínio nossa falsa excepcionalidade. Entretanto, nenhum altar pessoal nem sonho utópico íntimo vale mais do que qualquer um dos corpos que a esta hora desapareceram, estão presos ou, inclusive, baleados.

A reação não é senão a insistência em uma ideia abandonada pelos fatos. Brecht dizia que a política é a arte de pensar na cabeça dos outros, mas acredito que seja mais o ofício de sentir no coração alheio.

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