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Coluna
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América Latina enfrenta risco de “inverno democrático”

Desfaçatez de vozes autoritárias na região ―mais recentemente, na Nicarágua, no Peru e no Brasil― revela erosão mais ampla das instituições democráticas

Opositores do presidente Jair Bolsonaro participaram no sábado, 19 de junho, de um protesto contra o Governo em Goiânia.
Opositores do presidente Jair Bolsonaro participaram no sábado, 19 de junho, de um protesto contra o Governo em Goiânia.Alberto Valdés (EFE)
Oliver Stuenkel

A morte da democracia nicaraguense, simbolizada pela prisão de numerosos opositores ao longo das últimas semanas, não surpreendeu. Há anos, o presidente Daniel Ortega havia demonstrado suas ambições autoritárias. O que chocou, porém, foi a audácia com a qual o ditador mandou prender pelo menos dezesseis pessoas com ampla visibilidade pública, entre eles líderes políticos, ex-aliados, o presidente de um banco e o ex-presidente de uma associação empresarial.

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A reação regional veio rapidamente e teve amplo apoio―com a vergonhosa exceção dos governos da Argentina e do México―, mas Ortega sabe que sua escalada autoritária logo sairá do noticiário internacional. Afinal, a Nicarágua está longe de ser o único país latino-americano cuja democracia colapsou ou está sob forte pressão.

Na mesma semana, Keiko Fujimori, a candidata derrotada nas eleições presidenciais peruanas, recusou-se a reconhecer o resultado e falou de supostas irregularidades, sem apresentar evidências. Suas palavras representaram uma gravíssima ameaça à democracia do Peru, buscaram deslegitimar o vencedor do pleito, e não há dúvida de que fragilizarão as instituições democráticas de seu país por anos. Muitos do eleitores de Fujimori apoiaram sua tática. “É muito decepcionante ver as reações de muitos peruanos que por um lado falam sobre democracia e respeito ao voto, mas por outro lado não estão preparados para aceitar a vontade do povo peruano”, disse Michael Shifter, presidente do Inter-American Dialogue, em entrevista ao Wall Street Journal. Há pouco mais de um ano, o presidente da Guiana, David Granger, usou a mesma estratégia quando se recusou a aceitar sua derrota, citando supostas irregularidades no processo eleitoral.

No Brasil, o presidente Bolsonaro vem buscando erodir, de maneira sistemática, a confiança pública no processo eleitoral, preparando o terreno para questionar o resultado das eleições presidenciais em 2022 caso perca. O possível caos pós-eleitoral no ano que vem, como no Peru atualmente, já está precificado e é até esperado por observadores dentro e fora do país. Ameaças não muito veladas contra opositores, como fez recentemente o presidente do Superior Tribunal Militar (STM), general Luis Carlos Gomes Mattos, em entrevista à revista Veja, deixaram de surpreender.

Ao que tudo indica, Bolsonaro se prepara para adotar uma estratégia cada vez mais utilizada por líderes ao redor do mundo ―como visto, mais recentemente, nos Estados Unidos e em Israel, onde Trump falou de “enormes fraudes e irregularidades eleitorais” e Netanyahu defendeu que Israel estaria “testemunhando a maior fraude eleitoral da história do país, na minha opinião, na história de qualquer democracia.” Em todos os países, as sequelas para a democracia são enormes, haja vista os milhões de eleitores que perdem a fé no sistema eleitoral e questionam a legitimidade dos seus governos democraticamente eleitos.

Por uma série de razões, a América Latina estará particularmente vulnerável à erosão democrática ao longo dos próximos anos, e há risco de que a lista de países não-democráticos ganhe novos integrantes. No Global Democracy Index da revista britânica The Economist, publicado em fevereiro, apenas três países latino-americanos ―Costa Rica, Chile e Uruguai― são avaliados como democracias plenas (o último aparecendo, diga-se de passagem, à frente do Reino Unido), enquanto sete (Cuba, Venezuela, Nicarágua, Honduras, El Salvador, Haiti e Bolívia) constam como regimes não-democráticos. O resto, incluindo os principais países da região, como o Brasil (e, aliás, os EUA), é descrito como “democracias falhas”, sistemas políticos que possuem uma capacidade reduzida de resistir a investidas autocráticas.

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Região mais afetada do mundo pela pandemia ―apesar de representar apenas 8% da população mundial, é responsável por um terço de todas as vítimas de covid-19)— e arrebentada pela pior crise econômica da sua história, a América Latina está vivenciando retrocessos enormes em áreas fundamentais para a democracia, desde a educação pública até o combate à desigualdade. No Brasil, a renda média caiu abaixo de 1.000 reais pela 1ª vez em 10 anos, tendência que se reproduz na região inteira, oferecendo um potencial enorme para candidatos radicais com intenções autoritárias ―como visto, mais recentemente, em El Salvador, onde o presidente Nayib Bukele representa uma ameaça direta à democracia do seu país. Mesmo países cujo desempenho econômico foi acima da média ao longo da última década, como Peru e Colômbia, estão tomados pela raiva às elites políticas, algo que se reflete na onda de manifestações em muitas cidades colombianas e o triunfo do outsider radical Pedro Castillo.

Talvez mais preocupante ainda: os jovens serão os mais afetados pela crise sanitária. Nenhuma outra região do mundo manteve suas escolas públicas fechadas por mais tempo do que a América Latina. O Banco Mundial estima que 77% dos estudantes latino-americans estão abaixo do desempenho mínimo para sua idade, causando prejuízos econômicos irreversíveis para a “geração covid”. Menos comentado é o impacto devastador para o tecido social e a educação cívica em toda a região, fundamental para o bom funcionamento da democracia. Quanto mais tempo os governos demoram para controlar a pandemia, maior o custo de longo prazo para a faixa mais jovem do continente ―e, portanto, para a democracia latino-americana ao longo das próximas décadas.

O principal objetivo das democracias latino-americanas nos próximos anos, portanto, infelizmente não será se aprofundarem ou se aperfeiçoarem, mas fortalecerem sua resiliência e conter os danos, colocando pedras no caminho daqueles que buscam asfixiar a ordem democrática, seja por calar ou intimidar vozes críticas no debate público, seja não reconhecendo derrotas eleitorais―como aconteceu, recentemente, no Peru.

Oliver Stuenkel é professor adjunto de Relações Internacionais na FGV em São Paulo. É o autor de O Mundo Pós-Ocidental (Zahar) e BRICS e o Futuro da Ordem Global (Paz e Terra). Twitter: @oliverstuenkel

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