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Pandemia de coronavírus
Tribuna
São da responsabilidade do editor e transmitem a visão do diário sobre assuntos atuais – tanto nacionais como internacionais

Três semanas na fila da xepa da vacina e ela quase tombou antes de mim

A meta de conseguir uma sobra e celebrar meus 60 anos mais tranquila me fez trafegar entre diversos postos de São Paulo ouvindo histórias de outros que arriscaram a sorte, como eu. Vivi de tudo um pouco, até o carro de vacinas que se acidentou antes de chegar ao seu destino

A vacinada (e aniversariante) Marisa Torres.
A vacinada (e aniversariante) Marisa Torres.

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A hora da xepa da vacina! Essa experiência pode ser a mais dramática, hilária e desafiadora que alguém pode ter num ano de pandemia de covid-19. Especialmente quando a ordem do dia é ficar em casa e manter distanciamento. E eu estava seguindo o protocolo à risca. Permanecia isolada numa casa de praia no litoral paulista, numa área de acessos bem restritos e ainda assim, nem garças ou urubus que pousam por lá chegaram a me ver sem máscara. Tamanha a minha confiança na ciência. Aguardava o cronograma da vacinação que previa minha vez para março, talvez abril com algum atraso. Mas, essa previsão começou a tomar um rumo totalmente diferente. Ou melhor, rumo nenhum.

Mais informações
AME136. BUENOS AIRES (ARGENTINA), 15/04/2021.- Una enfermera prepara una vacuna contra la COVID-19 en una jornada de vacunación de adultos mayores, hoy en el Predio de Tecnopolis, en la Provincia de Buenos Aires, (Argentina). El presidente Alberto Fernández anunció el aumento de las restricciones y el cierre de escuelas a causa de la pandemia de la COVID-19. EFE/ Juan Ignacio Roncoroni
Lentidão da vacinação contra a covid-19 na Argentina pressiona o Governo em meio à crise econômica
AME772. RÍO DE JANEIRO (BRASIL), 26/05/2021.- Una trabajadora de la salud aplica hoy una dosis de la vacuna de AstraZeneca contra la covid-19 a una habitante de calle, en Río de Janeiro (Brasil). El programa "Consultório na Rua" (Consultorio en la calle) ya ha vacunado en una semana a más de 200 personas que viven en las calles de Río. EFE / André Coelho
Falta de critério único para a fila da vacina dificulta o controle de doses aplicadas em grupos prioritários

Começou, então, aquela história de doses de vacina numa espécie de xepa. Ou seja, sobravam vacinas depois que os prioritários da vez eram vacinados e era preciso aplicá-las no mesmo dia pois corriam o risco de serem descartadas depois dos frascos do imunizante terem sido abertos. Nas minhas redes sociais começaram a pipocar fotos de amigas, algumas mais jovens, sendo vacinadas a torto e direito na tal da xepa. Talvez essa bendita fila das sobras fosse a única possibilidade viável. Afinal, no dia 9 de junho eu completaria 60 anos. Mas por que esperar até lá? E sabe-se lá, se isso também não mudaria. Havia dificuldades nos envios de insumos da China e as vacinas ficando cada vez mais disputadas.

Eu já havia me consolado em cancelar todas as grandes festividades que um aniversário de 60 anos merece. Decidi, então, que iria tentar a xepa e me vacinar antes da virada de década. Alguns dias, uma semana, quem sabe no final de maio, com alguma sorte, para que pelo menos eu pudesse celebrar num pequeno grupo, com alguma tranquilidade.

Veja bem, a essa altura, idade não significa que você entende muito bem onde está se colocando. Dito isso, a tentativa de xepa, de repente, virou um desafio. A missão estava lançada. No início de maio deixei para trás a casa no litoral e retornei a São Paulo, onde não fiz outra coisa. Vasculhei todas as possibilidades em todas as direções. Sim, todas dentro de um raio bastante amplo. Digamos que hoje conheço bem os procedimentos de xepa nas unidades de saúde que vão do Bom Retiro, Alto da Lapa, Perdizes, Vila Madalena, Pinheiros, Itaim e Brooklin Novo.

As amigas que já haviam arriscado a sorte nessa fila da sorte davam dicas preciosas. Eu já estava devidamente cadastrada para pegar a xepa na unidade de saúde do bairro onde moro, na Vila Madalena. Você deixa seu telefone de contato que, de fato, funciona. Mas por que não tentar, talvez, o drive-thru da Hebraica, no bairro vizinho? Investiguei qualquer possibilidade.

Por vezes, confesso, tentei persuadir a enfermeira chefe dos postos com o argumento de que eu já estava mais para os 60 anos que para os 59. Afinal faltavam poucas semanas para eu me tornar elegível. Mas em todos os lugares eu ouvia um sonoro não. Não tinha jeito. Era 60 cravados, ou nada. Depois do quarto NÃO comecei a parar de contar. E, garanto, foram muitos. Alguns poucos enfermeiros ficavam sensibilizados com a minha história, quando acrescentava que eu tinha uma mãe de 94 anos e me sentiria mais confortável de chegar perto dela. E então vinha a pergunta fatídica!

– Tá bem, 59 anos, mas você tem certeza que não tem nenhuma comorbidade?

Eu ouvi tantas vezes essa pergunta, que tive de lutar internamente para não me sentir frustrada por dizer “não”. O guarda da triagem ao longo do drive-thru do Clube Hebraica foi ainda mais generoso. Ao ver o meu desapontamento em não poder seguir adiante com o carro para debaixo do toldo do mutirão de vacinação, num lindo sábado de sol, me disse todo polido.

– A senhora que me perdoe, mas não parece mesmo que tem essa idade. Eu olhei para ele e não sabia se ria ou chorava. Ele estava apenas tentando me consolar. Afinal, eu estava de máscara. Agradeci. Deixei para trás meus argumentos de convencimento e pisei no acelerador. Deixei, assim, uma fila de uns 20 carros que se formava atrás de mim.

Estava me tornando aquele indesejável perseguidor de xepa. Acho que foi neste dia que eu ainda segui em direção ao SUS do Itaim, afinal, não custava nada cruzar a ponte Cidade Jardim. Antes tivesse ido para NYC. Teria mais sorte. Sabe como é ―a essa altura os EUA já estavam distribuindo maconha, dinheiro e donuts para quem se dignasse a esticar o braço. Essa imagem me trazia um misto de bom humor e amargor. Afinal, para alguém, em algum lugar do planeta, esse périplo era mais atrativo.

Durante três semanas eu fiz religiosamente o mesmo caminho até lá. Cada dia era mais difícil estacionar perto do local, na Ferreira de Araújo. A xepa em Pinheiros no primeiro dia me encheu de esperança. O lugar de espera era amplo e aberto. E a enfermeira responsável aparecia pontualmente, às 18 horas, com muita calma e educação, para informar algumas dezenas de pessoas sobre o total das sobras. E responder um a um todo tipo de dúvida. Era fácil entender. Às vezes, sobravam 2, ou 3 doses para a famigerada xepa. Tinha decorado a distribuição das sobras.

Primeiro profissionais da saúde, depois comorbidades e então pessoas como eu, sim, por idade, a primeira da fila: 59 anos para baixo. Eu tinha uma chance real. Afinal, os com mais de 60 estavam elegíveis. Não precisavam enfrentar a xepa, nem nada. Meu marido, de 62, havia se vacinado em dois minutos, sem nenhum constrangimento, nem filas, nem persistência.

Mas esse cenário maravilhoso do concorrido posto de Pinheiros logo começou a desmoronar. As noites gélidas e escuras de maio não fizeram com que o público diminuísse. Ao contrário, crescia a cada dia. A essa altura eu já usava o meu casaco impermeável para ir à xepa na companhia de talvez uma centena de pessoas. A tensão ficava maior na expectativa do anúncio da enfermeira titular. Era mais aguardada que o manifesto dos jogadores da seleção sobre a Copa América. Eu tentava meditar e não criar expectativa. Todos ali estavam tensos. Isso pressionava e dava cada vez mais poder àquela ágil enfermeira, sempre disposta a nos comunicar o saldo do dia. Como se ela pudesse decidir os nossos destinos de saúde.

Nos últimos dias da minha vigília havia muita gente jovem correndo atrás da vacina, que invariavelmente, mal cobriam as demandas dos primeiros da fila, o pessoal da saúde. E quando a disputa ficava justamente pelo mês de nascimento. Quem havia chegado ao mundo primeiro? A triagem é dolorosa. A enfermeira continuava calma e paciente em explicar todas as noites os elegíveis à xepa, pois os protocolos eram atualizados diariamente. E, de repente, eu me peguei analisando a lista de comorbidades no café da manhã, como primeira leitura diária. Ainda bem que eles vinham na minha frente na lista de prioridades, assim, não haveria nenhum tipo de embate. Ainda assim, havia os que torciam para o protocolo do calendário oficial mudar e assim sobrar mais xepa. Nada. Durante os 20 dias em que compareci as doses se esgotavam antes de todos os da saúde serem vacinados. Que dirá os demais. Era tudo muito rápido após o anúncio. A debandada era geral.

Todas as noites as pessoas saíam de lá lamentando mais um dia de xepa. Num dos últimos dias um pessoal de comorbidades foi agraciado. Haviam sobrado 5 doses. A primeira dose era para o sortudo que iria pegar uma AstraZeneca. E as demais de Coronavac. Quase caí de costas quando um rapaz, de vinte e poucos anos, ao meu lado, escolhido para receber a dose disse que não tomaria Coronavac. Eu tentei dar uma luz a ele: “Troca com a do rapaz que pegou a Astrazeneca”, sugeri. Ele se recusou e foi embora, e a fila andou para mais um.

O rapaz que renegou a xepa me contou que tinha uma bolsa de estudos para doutorado de Filosofia, em Paris, mas não conseguia ir porque não estava vacinado. E tinha também uma comorbidade. Recusou a dose de Coronavac porque, naquele momento, a Europa ainda não aceitava o comprovante. Eu tentei argumentar com ele que logo isso estaria resolvido. Ele não quis arriscar. Me disse, “nem sei como ainda não cancelaram a minha bolsa de estudos”, num misto de gratidão e temor. Conclui que algumas pessoas ali tinham propósitos tão importantes quanto se salvar da covid-19. Seria isso possível?

Houve também uma jovem elegível por profissão, mas fora do escopo da idade. Foi parar na reza da xepa. Ela não tinha o registro profissional. Assim, não teve dúvidas, cruzou uma pequena multidão carregando um quadro imenso nas mãos. Chamava atenção de longe. Impossível não notar. Era o diploma com uma moldura enorme e prensado contra um vidro que ela havia arrancado da parede da sala de casa para tentar comprovar a formação. Apresentou-o, sem titubear, diante da enfermeira que, na rotina, já havia visto de tudo. Mais que Pai no Santo em dia de reza brava. Não teve jeito. Eu só vi a enfermeira de longe tombando a cabeça em negativa de um lado para outro. Dias mais tarde eu a vi com o quadro andando de novo por lá.

A área externa do posto de saúde em Pinheiros começou a ficar cada vez menor. As pessoas perdiam a noção de distanciamento. E a enfermeira, calma e simpática, decidiu que iria afastar todos de frente da sua porta de trabalho. Sim, a audiência crescente, agora, que se baixava mais e mais as idades, tinha de ficar uns 10 metros distante. Como eu batia ponto há três semanas, todos os dias, já me sentia íntima da enfermeira e do guarda que ficava conversando com as pessoas na porta. Como quem sabe onde pisa, eu me afastava para a área mais ampla e aguardava a enfermeira sair para o tão aguardado anúncio do dia. Com o tempo ela também começou a se atrasar.

Assim, já quase não dava tempo de eu voltar para a Vila Madalena para conferir a segunda xepa do dia. Todos os dias a mesma negativa. Eu me perguntava por que eu insistia? Percebi que comecei a ter o receio de não ir e acontecer o famoso improvável... vai que sobra uma dose?! Ás vezes, mesmo depois que a enfermeira separava os que levariam as doses da xepa, eu aguardava. Afinal, vai que na aspiração do frasco ela descobrisse que teria uma dose a mais no frasco. Lógico que isso nunca aconteceu.

O tempo se comprimia mesmo que a xepa tenha virado questão de honra. As minhas chances ficavam cada vez mais distantes. Antes de desistir de vez fui checar a minha posição na lista de espera (eles ligariam) na UBS do meu bairro. O meu nome estava na página 10. E eles estavam chamando as pessoas da página 3. Calculei bem e me convenci que eu iria me vacinar só depois dos 60, apesar de todos os meus esforços em prestigiar a famosa xepa.

Cheguei a fazer plantão várias noites em frente ao posto da Vila Madalena com alguns gatos-pingados que, como eu, duvidavam que alguém ligasse para avisar. Era ver para crer, feito fiscais da xepa, esperando que a pessoa eleita não atenda ao telefone naquela noite. Ou quem sabe não fosse encontrada. Sobraria assim uma dose para quem estivesse ali, na boca da urna! Não. Mas percebi que tinha de ficar atenta ao telefone. E se eu estivesse na xepa de Pinheiros e o pessoal da Vila Madalena me chamasse?! Talvez eu tivesse deixado um telefonema escapar?

Mas pode relaxar no sofá. Vou dizer. Cansei de ver as pessoas (felizardas) chegando apressadas, como quem se dirige a um púlpito para pegar um prêmio cobiçado e saindo de lá em plena vibração de receber a bendita dose da fila de espera, para admiração de todos os descrentes do plantão, que ganhavam ali uma injeção de esperança.

Tudo, no entanto, tem limite. E minha persistência também não resistiu. Quando chegou a véspera do feriado de Corpus Christi (dia 3 de junho), resolvi abandonar a profissão de perseguidora da dose da xepa. Desisti. Concluí que não ia dar em nada. Afinal, em poucos dias eu faria 60. Era o jeito. Resolvi voltar para a praia, onde mantinha o confinamento. Havia levado tão a sério minha vida na xepa que havia me cadastrado em vários lugares, como Mogi das Cruzes, onde minha mãe mora, e no litoral, para me vacinar. Afinal, as políticas de vacinação são diferentes de um lugar para outro.

Decidi me desconectar dessa ansiedade no feriado. E assim, sentada no sofá da casa no litoral, meu telefone tocou. Era a enfermeira da Vila Madalena. Ela estava me chamando para a xepa. Havia uma dose de Coronavac para mim. Me bateu um desasossego. Eu finalmente estava sendo chamada para a xepa. Sem filas, sem constrangimentos, sem nada. Só chegar, me apresentar, passar pelo portão e receber a vacina que eu mais queria: a Coronavac. Mas eu estava a 200 quilômetros de distância dela...

Tentei, num último lance, negociar com a enfermeira para guardar a minha dose que eu subiria para São Paulo no dia seguinte, na primeira hora. Ela lamentou. E disse que me chamaria novamente. Receber essa ligação foi quase mais emocionante do que ter presenciado tantas histórias impossíveis de ser contadas aqui.

Mas essa história não acabou assim para mim. Minha obstinação pela vacina antes da virada foi garantida, claro que com uma emoção extra. A cidade de São Sebastião, onde também estava cadastrada, abriu a aplicação para pessoas com 58 e 59 anos. Cheguei bem cedo ao posto local, para pegar uma ficha. A minha era a de número 2. Que emoção. Eu finalmente estava indo ser vacinada. A enfermeira avisou que as doses chegariam depois das 9 horas, ou seja, tinha tempo para sentar e apreciar a paisagem verde do entorno, com coqueiros, Mata Atlântica.

Foi nesse ambiente que aguardei a minha primeira dose de AstraZeneca. E fiquei ali calmamente até que comecei a olhar para o céu e ver uma nuvem escura se aproximando. Na sequência, a enfermeira do posto se aproximou e avisou. “Vamos atrasar, o carro que estava transportando as vacinas capotou na serra, na saída de São Sebastião.” Por um instante eu pensei que não era para eu tomar a vacina. Não era possível que a minha vacina havia capotado algumas vezes antes de chegar até mim. Por sorte o motorista e as vacinas foram salvos. Recebi a minha dose por volta das 13h desta segunda, 7. Dois dias antes de completar 60 anos. Que venha uma nova década, cheia de esperança. Com menos atrasos, por favor. Por ironia, São Paulo anunciou a antecipação do cronograma por idade logo após eu me vacinar. Mas quem liga agora? Que a xepa continue, dando prioridade aos excluídos. Prepare o braço. E as pernas! E feliz aniversário para todos nós sobreviventes da xepa!

Marisa de Torres é jornalista

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