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Coluna
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Os pulmões da economia brasileira estão irreversivelmente fibrosados

O Brasil não está com os pulmões fibrosados em razão do SARS-CoV-2. A doença que acomete os órgãos respiratórios do país é gradual e progressiva, proveniente de maus tratos, desarranjos, desentendimentos, retrocessos, e, sobretudo, de uma mórbida inclinação a manter-se fora do mundo

Reprodução das capas da 'The Economist' sobre o Brasil nos últimos anos.
Reprodução das capas da 'The Economist' sobre o Brasil nos últimos anos.
Monica de Bolle

Causou rebuliço a capa da mais recente edição da revista The Economist. Depois de mostrar um cristo foguete nos anos 2000 e um Cristo como avião desgovernado nos anos 2010, o semanário britânico agora nos brindou com um Cristo asfixiado, balão de oxigênio ao lado, ainda que de pé. Talvez tivesse sido mais impactante um Cristo pronado, intubado, sem qualquer perspectiva de sair da UTI. De toda maneira, independentemente do que se pense das capas da The Economist, a reportagem especial esmiuça algumas de nossas mazelas, mas não todas. E, aponta corretamente para a última década como aquela em que o Brasil adoeceu para jamais se recuperar plenamente.

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A fibrose pulmonar ocorre quando o tecido dos pulmões é danificado de modo irreversível. O tecido cicatricial resultante desses danos é grosso e rígido, dificultando a capacidade de expansão e retração dos pulmões sem as quais a respiração se torna insuficiente. Às vezes, é possível identificar a causa da fibrose pulmonar ―por exemplo, sabemos que pacientes acometidos de casos graves de covid-19 podem apresentar o quadro após a “recuperação” da doença devido à forma como o vírus e as alterações no sistema imune dele provenientes atacam a estrutura dos pulmões. Em outros casos, a fibrose pulmonar pode ser diagnosticada como idiopática, termo utilizado quando a causa de uma enfermidade não é identificada. O Brasil, apesar da alusão à covid-19 na capa da The Economist, não está com os pulmões fibrosados em razão do SARS-CoV-2. A doença que acomete os órgãos respiratórios do país é gradual e progressiva, proveniente de maus tratos, desarranjos, desentendimentos, retrocessos, e, sobretudo, de uma mórbida inclinação a manter-se fora do mundo. Sem causa única, trata-se de um caso idiopático.

A etimologia da palavra vem do grego “idio”, que significa “do próprio indivíduo, privado”, e “pathos”, que traz a ideia de sofrimento. A idiopatia brasileira vem sendo discutida intensamente ao longo dos últimos muitos anos, ainda que a intensidade esteja mais na repetição de ideias do que propriamente em reflexões ancoradas nos desafios que o mundo apresenta a todos. O enrijecimento do debate brasileiro vinha sendo tema frequente de minhas colunas para o Estadão e para a Época até serem encerradas nos últimos meses. Esse enrijecimento foi fonte de bastante aborrecimento para mim, razão pela qual optei por sair do debate de alta frequência tanto nos veículos de comunicação do país, quanto nas redes sociais. Mas não pretendo tratar aqui desses assuntos irremediáveis. Prefiro fazer uma retrospectiva mais nuançada da última década usando como gancho a excelente matéria publicada pela revista The Economist.

A análise acerta ao identificar a última década como especialmente problemática para o Brasil. A começar em 2011, sofremos com a reversão dos preços das commodities nos mercados internacionais e com as consequências duradouras da crise financeira internacional de 2008. Para quem não se lembra, 2011 foi o ano mais complicado da crise europeia, com riscos elevados de outra rodada de quebradeiras bancárias, além de muitos enroscos geopolíticos. Na ocasião, muitos acreditavam que países como a Grécia, e quiçá outros maiores, não seriam capazes de permanecer na zona do euro, o que agravaria ainda mais a crise. A esse quadro se juntou a necessidade de desmontar os estímulos fiscais e monetários que haviam sido postos em prática para combater a crise de 2008. O resultado foi a queda dos preços das matérias-primas, a reversão do fluxo de recursos para os países emergentes como o Brasil, e a desvalorização súbita de várias moedas elevando os riscos inflacionários. No caso brasileiro, a predisposição inflacionária estava colocada pelas políticas econômicas do governo de Dilma Rousseff, que havia aumentado os gastos, o crédito público, e reduzido os juros para atenuar os efeitos da crise externa sobre o crescimento brasileiro. As políticas de Dilma foram objeto de minuciosa análise em meu livro Como Matar a Borboleta-Azul: Uma Crônica da Era Dilma publicado em 2016, e não vou repetir aqui as principais críticas. Basta dizer que houve muitos equívocos, ainda que o objetivo tenha sido o de salvaguardar a expansão econômica e o aumento de empregos.

Do ponto de vista estritamente econômico, as políticas do governo Dilma contribuíram para que desequiliíbrios econômicos preexistentes se acumulassem. Contudo, o contexto político em que essas medidas foram adotadas era já conturbado por uma sensação de que os ganhos sociais começavam a estagnar após a inédita mobilidade social durante os anos 2000. Lembro-me de ter escrito, em 2019, artigo para o jornal O Estado de São Paulo abordando os protestos na América Latina e situando as manifestações de 2013 no mesmo contexto: o de sociedades que sentiam a estagnação e, frustradas, saíam às ruas para manifestar essa insatisfação difusa. Nos anos 70, a possibilidade de que avanços pudessem se transformar em intensas crises sociais fora elaborada pelo economista Albert O. Hirschman em um de seus artigos mais instigantes onde expôs o chamado efeito túnel. Para os leitores curiosos, sugiro procurar na internet a descrição do efeito túnel de Hirschman, mas, na essência, ele trata da impaciência das sociedades quando ganhos sociais começam a arrefecer após um período de crescimento, aumentos de renda, e queda de desemprego. A sociedade brasileira entrou no túnel de Hirschman em 2013 e de lá jamais conseguiu sair. Enquanto isso, a classe política, mais interessada na própria sobrevivência e no velho clientelismo latino-americano, se absteve de qualquer responsabilidade em relação às crescentes frustrações. Também se absteve, lado a lado com parte da elite intelectual brasileira, de reconhecer que os problemas do país eram muito mais profundos do que é capaz de capturar o vago termo “responsabilidade fiscal”.

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Perdido e assoberbado por escândalos diversos, o país mergulhou em profunda recessão da qual jamais se recuperou. Em meio a isso, fez-se às pressas um impeachment de coalizão para instaurar um governo que resgatasse a “confiança”, outro termo vago atrás do qual tantos buscam se esconder. A falta de rumo e o agravamento das tensões internas ―da desigualdade, dos grupos que se viam cada vez mais alijados de seus direitos, da ausência do dinamismo econômico que fora soterrado por décadas de políticas desarranjadas― pariram um país regido pelas piores paixões, resultando na eleição de Bolsonaro e na recusa de muitos, ainda hoje, de reconhecerem que os terríveis impulsos que o movem já eram visíveis há 30 anos. Os que nele votaram apesar de tudo, mas hoje o rejeitam, ainda pensam que optaram pelo mal menor. E, é esse o problema do Brasil como sociedade. Assim como não punimos os criminosos da ditadura, não haveremos de punir o criminoso da pandemia, ainda que tenhamos CPI e, nela, uma espécie de tortura que vicia como nenhum outro reality show é capaz de fazer. Trata-se do país, revivendo seus piores momentos, de cara com o que as pessoas têm de pior―o negacionismo, a mais abjeta irracionalidade― como se disso fosse resultar qualquer catarse. Não me oponho à CPI, é claro. Tampouco guardo ilusões.

Sobrou 2022, mas, e daí? O que temos a oferecer a nós mesmos? O que queremos como nação? Como nos enxergamos e, mais importante, quais os nossos pontos cegos? Creio que os pontos cegos do Brasil apenas aumentaram nesse ano pandêmico. Por enquanto, o que nos resta é respirar com esses pulmões engessados, agarrados às paixões tristes que regem o país.

Monica de Bolle é economista, PhD pela London School of Economics e especializada em medicina pela Harvard Medical School. É professora da Universidade Johns Hopkins, pesquisadora-Sênior do Peterson Institute for International Economics e mestranda em Imunologia e Microbiologia na Georgetown University.

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