_
_
_
_
_
Coluna
Artigos de opinião escritos ao estilo de seu autor. Estes textos se devem basear em fatos verificados e devem ser respeitosos para com as pessoas, embora suas ações se possam criticar. Todos os artigos de opinião escritos por indivíduos exteriores à equipe do EL PAÍS devem apresentar, junto com o nome do autor (independentemente do seu maior ou menor reconhecimento), um rodapé indicando o seu cargo, título académico, filiação política (caso exista) e ocupação principal, ou a ocupação relacionada com o tópico em questão

Por que os ditadores e tiranos enchem a boca falando de “povo”?

Para eles, o povo é formado pelos mais incultos, pelos mais pobres, pelos que ficam sempre à margem das pessoas que detêm o poder e decidem o que é melhor para eles. Eles não precisam pensar. O tirano pensa por eles

Presidente Jair Bolsonaro acena para apoiadores em Brasília, no dia 5 de abril.
Presidente Jair Bolsonaro acena para apoiadores em Brasília, no dia 5 de abril.Eraldo Peres (AP)
Juan Arias

Não deve ser uma casualidade que os ditadores e tiranos adorem falar de “povo”. No Brasil, o presidente Jair Bolsonaro sempre se refere ao povo. Dias atrás, disse a seus seguidores que está “aguardando o povo dar uma sinalização” para tomar decisões.

Apoie nosso jornalismo. Assine o EL PAÍS clicando aqui

Mais informações
Eleição Câmara e Senado Brasil
A CPI machista da covid-19 no Brasil, com 18 senadores e nem uma única mulher
A supporter of Brazil's former President Luiz Inacio Lula da Silva holds a portrait of Lula during a protest in front of the Supreme Court in Brasilia, Brazil, April 15, 2021. REUTERS/Adriano Machado
Por que Lula prefere que Bolsonaro chegue politicamente vivo às eleições?
(FILES) In this file photo taken on March 29, 2021 Brazilian President Jair Bolsonaro gestures as he attends the signing ceremony of the Provisional Measure to improve the business environment in Brazil, at Planalto Palace in Brasilia. - Bolsonaro discarded decreeing a national lockdown recommended by specialists on April 7, 2021, amid critical levels of infections during a second wave of the COVID-19 pandemic in the country. (Photo by EVARISTO SA / AFP)
Os três gols seguidos em Bolsonaro podem prever sua derrota final

Quem é esse povo ao qual os ditadores sempre se referem? Em suas bocas, “povo” soa como um rebanho que segue fielmente as ordens do déspota. É a massa que obedece às cegas as ordens do tirano de plantão que a hipnotiza para torná-la objeto passivo de seus caprichos.

Para eles, o povo é formado pelos mais incultos, pelos mais pobres, pelos que ficam sempre à margem das pessoas que detêm o poder e decidem o que é melhor para eles. Eles não precisam pensar. O tirano pensa por eles.

Para os regimes autoritários, da qualquer cor política, basta oferecer miragens ao povo. O povo não tem direitos. Deve apenas seguir as ordens do dono do rebanho.

A diferença entre democracia e ditadura é que para a primeira existe a sociedade —plural, crítica, criativa, pensante— e, para a segunda, existem apenas as massas que esperam ordens do pai patrão que pensa e decide por elas.

A civilização é criada com o diálogo, a crítica e a polêmica.

A sociedade é construída com liberdade para criar e decidir em conjunto. A civilização supõe um confronto de ideias para chegar às melhores soluções na tentativa de oferecer oportunidades para todos. As pessoas têm sua individualidade, cada uma é diferente e tem o direito de discordar e dialogar. Uma civilização respeita e defende as diferenças. As tiranias anestesiam as massas. A civilização se enriquece com a dissensão e o pluralismo de ideias.

Nunca gostei do grito de “o povo unido jamais será vencido”. A verdade é que esse povo do qual os ditadores tanto gostam acaba sempre derrotado, mesmo quando tem a ilusão de ter vencido. Acaba sempre dominado e nos braços de outra ideologia.

O povo do qual os autoritários gostam é aquele ao qual nunca ofereceram igualdade de oportunidades para avançar na vida. Por isso, nos regimes sem democracia, com desigualdades sociais cruéis, seus líderes idolatram o povo, que para eles é mais fácil dominar e enganar.

Não por acaso, os regimes totalitários são os que menos valorizam a educação e a cultura, os pilares que nos permitem ter nossa própria visão do mundo.

É mais fácil escravizar os incultos, os que não são capazes de interpretar o mundo e de fazer escolhas, porque eles já recebem o prato pronto, sem que possam escolher a comida. Não é isso que fazemos com os animais?

O que diferencia as pessoas é se elas nascem em um país no qual todas têm as mesmas oportunidades de avançar na vida ou no qual os dirigentes é que decidem quem terá direito à cultura e ao pensamento e quem deverá se contentar com as sobras dos privilegiados. Nos países onde não se oferece igualdade de oportunidades é que se formam a massa que não precisa pensar, as elites decidem por ela.

A escravidão existe desde o início da humanidade. Sempre foi negado aos escravos o direito ao estudo. Aqui no Brasil, até não muito tempo atrás, era normal que a escola fosse só para os filhos dos ricos. Os pobres, dizia-se, “devem trabalhar, como seus pais sempre fizeram”. Quando a escravidão foi abolida, não foi oferecida aos libertos a possibilidade de se culturalizar. Não por acaso, o que os políticos chamam de povo nada mais são do que os herdeiros da escravidão, aos quais se ensina a virtude da obediência, nunca a liberdade de pensamento e de decisão.

A linguagem nunca é inocente e costuma estar repleta de significados muito diferentes.

Desconfie sempre de quem enche a boca falando de povo, porque já foi impregnado pelas ideologias intolerantes e escravistas. As ovelhas não recebem nome e sobrenome. E é significativo que os pobres e sem cultura não costumem ser chamados por seus nomes próprios por seus “donos”, e sim por apelidos. É que não são vistos como pessoas. São povo, massa, gado. Será que também não têm alma?

As elites costumam dizer: “Chame minha secretária, meu cozinheiro, minha empregada, meu motorista”. O povo não tem nome próprio. Mas até nossos animais de estimação são chamados pelo nome.

É urgente rever nossa linguagem, que sempre nos trai.

As palavras carregam em seu ventre o significado que vamos dando a elas.

Hoje, liberdade, direitos, respeito às diferenças, construção conjunta de uma civilização de diálogo sem donos nem senhores de ninguém, sem ódios nem divergências sangrentas, tudo isso é o que chamamos de democracia. Todo o resto é fascismo.

Escrevo esta coluna neste 25 de abril, aniversário da Revolução dos Cravos de Portugal. Por esse motivo, uma poeta brasileira escreveu no Facebook:

Morte aos déspotas de todos os tempos.

Para os que já morreram,

que morram suas ideias.

Que suas armas

se transformem

em livros e flores.

Que um dia cada vida possa viver

a sua própria arquitetura de sonhos,

talentos.

Que o pão se multiplique,

que o amor seja o pão.

Juan Arias é jornalista e escritor, com obras traduzidas em mais de 15 idiomas. É autor de livros como Madalena, Jesus esse Grande Desconhecido, José Saramago: o Amor Possível, entre muitos outros. Trabalha no EL PAÍS desde 1976. Foi correspondente deste jornal no Vaticano e na Itália por quase duas décadas e, desde 1999, vive e escreve no Brasil. É colunista do EL PAÍS no Brasil desde 2013, quando a edição brasileira foi lançada, onde escreve semanalmente.

Inscreva-se aqui para receber a newsletter diária do EL PAÍS Brasil: reportagens, análises, entrevistas exclusivas e as principais informações do dia no seu e-mail, de segunda a sexta. Inscreva-se também para receber nossa newsletter semanal aos sábados, com os destaques da cobertura na semana.

Registre-se grátis para continuar lendo

Obrigado por ler o EL PAÍS
Ou assine para ler de forma ilimitada

_

Mais informações

Arquivado Em

Recomendaciones EL PAÍS
Recomendaciones EL PAÍS
_
_