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Governo Bolsonaro
Tribuna
São da responsabilidade do editor e transmitem a visão do diário sobre assuntos atuais – tanto nacionais como internacionais

Os velhos riscos da nova lei antiterrorismo de Bolsonaro

A mais recente investida contra a sociedade brasileira se dá através de um projeto em tramitação na Câmara que ameaça movimentos sociais e dá superpoderes aos órgãos de segurança e inteligência

O presidente Jair Bolsonaro cumprimenta o presidente da Câmara, Arthur Lira, após reunião no dia 25 de março, em Brasília.
O presidente Jair Bolsonaro cumprimenta o presidente da Câmara, Arthur Lira, após reunião no dia 25 de março, em Brasília.UESLEI MARCELINO (Reuters)

A boiada que passa sobre a legislação ambiental atropela também a democracia e os direitos humanos. Já se perdeu a conta dos retrocessos impostos pelo Governo Jair Bolsonaro e sua base no Congresso Nacional, conforme, de modo sistemático, trabalham para restringir o espaço cívico, para constranger as liberdades fundamentais de pensamento, associação e expressão e para atacar os direitos fundamentais. A mais recente investida contra a sociedade civil brasileira toma a forma de uma proposta de nova lei antiterrorismo que ameaça movimentos sociais e dá superpoderes aos órgãos de segurança e inteligência

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Em meio ao caos provocado pela pandemia e agravado pelo desgoverno federal, esta proposta também tem a marca do atual ocupante do Palácio do Planalto. O Projeto de Lei (PL) nº 1595/2019, de autoria do deputado Major Vitor Hugo, é, na realidade, uma reedição da proposta apresentada em 2016 pelo então deputado federal Jair Bolsonaro.

O que distingue este projeto de tantos outros que igualmente preocupam a sociedade civil foi a notícia de uma manobra regimental para acelerar a sua aprovação na Câmara. Ao invés de o projeto seguir o rito normal de apreciação nas três comissões temáticas responsáveis, atribuiu-se também à Comissão de Ciência e Tecnologia responsabilidade para apreciar a proposta. A fragilidade da justificativa para tal atribuição já era suficiente para questionar a idoneidade de seus motivos: “a proposta [...] pode ser aprimorada no tocante aos campos de tecnologia e comunicação, imprescindíveis para a prevenção do terrorismo.”

Com a atribuição de quatro comissões para apreciar a proposição, entra em efeito norma regimental que determina a substituição das comissões permanentes por uma única comissão especial. Conhecido como cumprido de promessas, o Presidente da Câmara, Arthur Lira, criou-a rapidamente, confirmando a perspectiva de que, sob seu comando, a Casa voltaria a analisar os projetos da bancada BBB (Bíblia, Bala e Boi). Em resumo, estabeleceram-se as condições para uma tramitação acelerada do PL 1595/2019. Na prática, isso reduz as oportunidades de resistência da oposição e diminui a incidência dos holofotes sobre a sua discussão, ainda mais grave em tempos de reduzida transparência e participação social nas deliberações do Congresso Nacional.

É difícil identificar, nas justificativas apresentadas pelo próprio autor, pontos que justifiquem acelerar a tramitação de projeto que, sob uma ou outra forma, aguarda apreciação desde 2016. Os indícios apresentados pelo deputado Major Vitor Hugo não passam de referências pouco específicas, datando desde 2012, a possíveis ameaças de ataques terroristas contra o Brasil que, como se sabe, não se concretizaram. Em tese, os momentos de maior vulnerabilidade e risco de ataques, quais sejam os grandes eventos esportivos ocorridos entre 2014 e 2016, já passaram e o país vive um período de menor proeminência no cenário internacional.

A experiência dos últimos anos com relação à própria aplicação da Lei Antiterrorismo, de 2016, não denota a sua inadequação para o desafio enfrentado. Pelo contrário, a sua escassa aplicação demonstra que não era por falta de legislação que o Brasil se encontrava mais ameaçado pelo terrorismo. As instâncias em que se pretendeu recorrer a esta legislação foram poucas e, mesmo entre estas, questionáveis do ponto de vista legal e prático.

O cenário internacional tampouco justifica a reformulação da legislação brasileira de combate ao terrorismo, ainda mais que tal processo aconteça a toque de caixa. Pelo contrário, o que tem se visto globalmente é uma redução da atividade terrorista. De acordo com o Global Terrorism Database, tanto o número de atentados terroristas quanto a quantidade de vítimas fatais estão em declínio desde 2014. Entre aquele ano e 2019, houve uma queda de 50% no número de atentados, acompanhada de uma redução de 54% no número de mortes causadas pelo terrorismo.

Uma análise geográfica evidencia a concentração de atentados, nos últimos anos, no Oriente Médio e África. A principal preocupação no que se refere a tendências recentes do terrorismo internacional é o aumento do número de atentados motivados por racismo e preconceito étnico. Nenhum dos dois fatores aponta para um aumento do risco para o Brasil. Mesmo a pressão de órgãos internacionais para que o Brasil adequasse sua legislação para combater o financiamento do terrorismo foi equacionada com a Lei Antiterrorismo.

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Ainda que a própria natureza do fenômeno terrorista impeça que qualquer país se considere imune a ataques, o planejamento de políticas antiterroristas deveria se fiar em uma avaliação concreta dos riscos a que se está sujeito e dos custos materiais e imateriais destas políticas. Importa para essa avaliação também quais são as eventuais consequências negativas e as reações adversas desse tipo de política, ou seja, as circunstâncias em que pode ser aplicada sem qualquer relação com os objetivos abertamente pretendidos e com impactos deletérios para direitos e liberdades fundamentais.

Historicamente, legislações de combate ao terrorismo, em função da própria dificuldade de definir o fenômeno, foram utilizadas para oprimir opositores políticos. No caso brasileiro, a preocupação —fundada na experiência histórica brasileira, especialmente no período da ditadura militar— é que esse projeto seja utilizado para reprimir movimentos sociais e manifestações de oposição ao governo. Pode-se argumentar, inclusive, que foi a insatisfação quanto à (falta de) maleabilidade da Lei Antiterrorismo para que seja utilizada com esses fins que motivou a apresentação do projeto original, ainda em 2016, pelo então deputado Jair Bolsonaro.

No formato atual, o PL autoriza, por exemplo, a repressão de atos que tenham a intenção “de afetar a definição de políticas públicas por meio de intimidação, coerção, destruição em massa, assassinatos, sequestros ou qualquer outra forma de violência”. Fácil perceber como qualquer protesto na Cinelândia ou ação do MST poderia, nesses termos, ser enquadrado como ato terrorista, autorizando medidas extremas para sua repressão. Aumenta também os poderes de órgãos de segurança e inteligência, além de limitar a sua responsabilização com cláusulas excludentes de ilicitude.

No contexto atual, a preocupação com desvios na aplicação dessa lei ganha contornos ainda mais relevantes. Se multiplicaram, nas últimas semanas, notícias de que a Lei de Segurança Nacional tem sido utilizada para enquadrar quem expressa oposição ao Presidente da República. A fragilidade das justificativas do PL 1595/2019 fortalece a percepção de que o real objetivo dessa proposta é justamente autorizar esses desvios e concretizar aquilo que foi apresentado como reação adversa: reprimir opositores do Presidente, ONGs e movimentos sociais, fechando, ainda mais, o espaço cívico brasileiro.

Guilherme France é autor do livro ‘As Origens da Lei Antiterrorismo no Brasil’, mestre em Direito Internacional pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro e mestre em História, Política e Bens Culturais pela Fundação Getulio Vargas.

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