Pandemia de coronavírus
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Brasil, o pior país do mundo para as mulheres negras grávidas

Lidiane, como outras mulheres que morreram na gravidez, no parto ou no puerpério, era dependente de um sistema de saúde entranhado no racismo estrutural da sociedade brasileira

Protesto da Coalizão Negra por Direitos em Brasília, em agosto de 2020.
Protesto da Coalizão Negra por Direitos em Brasília, em agosto de 2020.ADRIANO MACHADO (Reuters)
Debora Diniz
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Um compromisso contra o racismo nas Américas, um impulso pelos direitos das mulheres negras no Brasil

Lidiane estava grávida do segundo filho. Trabalhava em uma funerária herdada do pai, o negócio era familiar. Todos os dias embalava e embelezava os corpos para que fosse feita a última despedida. Nunca trabalhou tanto quanto na pandemia de covid-19 no Rio de Janeiro. Já grávida, foi quem preparou o pai para as cerimônias fúnebres. Era a segunda filha de três irmãs, a única que reproduzia o ofício de cuidar dos mortos com a arte do vestir, maquiar, ajeitar mãos e olhos. Não podia adoecer por razões íntimas e altruístas, contam as irmãs, Erika e Monika: sua renda dependia da funerária, e nunca se precisou tanto dos cuidadores dos mortos quanto na pandemia. Mas Lidiane trabalhava com medo.

Trabalhou até as 40 semanas de gestação, quando começou a sentir picos de pressão. Chegou à maternidade e a diagnosticaram com um quadro de ansiedade. Uma cesárea de emergência foi o contrário do sonhado parto humanizado no pré-natal. O mal-estar ganhou outros contornos depois do parto, Lidiane arfava, queixava-se de falta de ar. Sem ter sido testada para covid-19, recebeu alta com uma prescrição psiquiátrica para o pós-parto. Seu mal seria pânico e ansiedade, diziam os médicos no prontuário. Permaneceu em casa dois dias, e mesmo com o mal-estar crescendo, tentou voltar a trabalhar na funerária. Se preparava para atender uma família que pedia os cuidados para um parente morto de covid-19 quando uma das irmãs a forçou a retornar ao hospital. Na porta do hospital, a fila de doentes se confundia com os carros das funerárias, “era uma cena de guerra”, descreve a irmã.

Era abril de 2020, o primeiro pico da pandemia no Brasil, vivemos agora o terceiro. Pouco se falava do risco às mulheres grávidas. Por onde o vírus passava, os estudos ainda não mostravam riscos aumentados às mulheres grávidas. Assim foi na China, Japão, Coreia do Sul, Singapura, Espanha ou Itália, países com baixas taxas de natalidade e poucas gestantes. Até chegar no Brasil: um estudo de julho de 2020 mostrou que a taxa de letalidade era de 12,7% entre mulheres grávidas e no pós-parto. O estudo mostrou ainda associação do óbito à falência do sistema de saúde: 15% das mulheres não receberam nenhuma assistência ventilatória, 28% não tiveram acesso a UTI, 36% não foram intubadas nem receberam ventilação mecânica. Outro estudo publicado em julho de 2020 mostrou como o racismo estrutural ampliaria os riscos de Lidiane para o desfecho trágico: mulheres negras grávidas e puérperas têm um risco de morte por covid-19 quase duas vezes maior quando comparadas às mulheres brancas.

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Lidiane deve ter sido um dos números desses estudos: foi intubada e chegou a passar 16 dias na UTI. Morreu sozinha, em 15 de maio de 2020, de uma parada cardíaca, tendo antes recebido o tratamento experimental de hidroxicloroquina defendido ainda hoje pelo presidente Bolsonaro e pelo Conselho Federal de Medicina no Brasil, apesar da ineficácia demonstrada pela ciência. O teste para covid-19 foi realizado na UTI, porém o resultado nunca foi apresentado à família. O corpo de Lidiane foi entregue à família num saco preto lacrado com fitas de investigação de crimes policiais. Não houve rito ou cuidado do corpo. Seis pessoas a velaram por 15 minutos em uma sala que impedia a aproximação do caixão: as irmãs guardam uma fotografia do momento —um caixão de madeira, com adornos dourados. Sem flores ou mensagens de saudades. No chão uma fita policial preta e amarela demarcava a distância dos que choravam ao caixão lacrado. As irmãs investigam a verdade sobre a morte de Lidiane —mostram as cópias do prontuário médico, escutam as testemunhas que cuidaram dela na UTI, tentaram acompanhar o caso no Comitê de Morte Materna do Rio de Janeiro como puderam. Para as irmãs, não há dúvida: Lidiane morreu porque era uma mulher negra grávida dependente de um sistema de saúde entranhado no racismo estrutural da sociedade brasileira.

Há dois meses escuto histórias de mães, irmãs, maridos e cunhadas de mulheres que morreram na gravidez, no parto ou no puerpério com covid-19. Assim conheci a história de Lidiane e conversei com suas irmãs, Erika e Monika, e com Amanda, uma sobrinha, que a acompanhava no pré-natal e com quem teve a última conversa antes de falecer na UTI. Já escutei dezenas de histórias, em um universo nebuloso dos números que estima mais de 500 mulheres mortas. O número de mulheres grávidas mortas por covid-19 teria começado a cair em setembro de 2020, mas voltou a crescer em 2021: 17 mulheres somente em janeiro. Segundo relatório da Organização Pan-Americana de Saúde (Opas), cinco em cada cem mulheres grávidas infectadas por covid-19 não sobreviveram: isso significa uma taxa de letalidade nove vezes maior que a média das Américas. O Brasil é o epicentro da morte materna por covid-19 no mundo —se somos o pior país do mundo para se viver na pandemia de covid-19, somos o pior país do mundo para uma mulher grávida esperar o parto neste momento. Em particular, para as mulheres grávidas negras e pobres o Brasil é o pior país do mundo para se sobreviver à pandemia.

Debora Diniz é brasileira, antropóloga, pesquisadora da Brown University.

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