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Coluna
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De Herrera a Herrera: mulheres contra o patriarcado em El Salvador

Morena e Karina tinham o mesmo sobrenome, mas a segunda estava presa por um suposto crime de aborto. Morena ajudou a desvendar uma das engenharias mais perversas do patriarcado latino-americano: a criminalização de emergências obstétricas, incluídos abortos espontâneos e inseguros

Protesta El Salvador mujeres aborto
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Catholic anti-abortion demonstrators hold signs that read in Spanish "Say no to abortion, yes to life," to protest against the possible legalization of therapeutic abortion outside Congress in Santo Domingo, Thursday, Oct. 25, 2007. The Catholic Church in the Dominican Republic supports a large-scale offensive against the government's consideration of legalizing "therapeutic abortion." All types of abortion are illegal in the Dominican Republic. (AP Photo/Ramon Espinosa)
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A informação chegou de voz estrangeira à salvadorenha Morena Herrera. “Há mulheres presas por aborto”, dizia aquela mulher, “e elas ficarão presas 30 anos ou mais”. Herrera não acreditou no que ouvia, o crime de aborto tinha o limite de oito anos na lei penal. Por que sentenças tão longas? Pediu que a intérprete explicasse como Donna Ferrato sabia dessas mulheres. Ferrato havia terminado um ensaio fotográfico para o jornal The New York Times sobre a criminalização do aborto em El Salvador e ouvira a história das próprias mulheres presas. Uma delas era Karina Herrera. A coincidência de sobrenomes foi fundamental para que Morena iniciasse uma jornada por identificar as mulheres e lutar em tribunais nacionais e internacionais pelo direito de liberdade.

Era 2006. Não havia organização que atuasse pela mudança da lei penal de aborto: o tema era arriscado demais para os anos seguintes ao conflito armado que assolou o país. O aborto foi integralmente criminalizado em El Salvador em 1997, após uma revisão cruel do Código Penal. A criminalização do aborto é, ainda hoje, absoluta —nem mesmo para salvar a vida da mulher ou em casos de estupro contra meninas. Morena Herrera resolveu investigar o que Donna Ferrato contava. Bateu à porta do presídio e se apresentou como tia de Karina Herrera. O sobrenome comum às duas mulheres facilitou a aproximação inicial. Uma das mais importantes resistências feministas das Américas tinha ali início: de mulher para mulher, de Herrera para Herrera.

Depois de três anos de investigações e batalhas judiciais, Karina foi solta. Com ela, Morena entendeu uma das engenharias mais perversas do patriarcado latino-americano: a criminalização de emergências obstétricas, incluídos abortos espontâneos, abortos inseguros e partos extra-hospitalares e desassistidos. A busca pelas mulheres criminalizadas era tortuosa, pois uma artimanha jurídica as acusava não do crime de “aborto”, mas de “homicídio agravado por vínculo” contra vítimas de zero idade ou recém-nascidas. Aborto ou “homicídio agravado por vínculo” não deve ser entendido como uma disputa por hermenêutica penal, mas como um indício de como o patriarcado faz uso da política criminal para inscrever-se com crueldade no corpo das mulheres. A metamorfose de um tipo penal em outro ainda mais gravoso tem dois objetivos: aumentar o estigma sobre o aborto, qualificando-o na lei como o tipo de homicídio, além de ampliar a pena de prisão de forma a fazê-la perpétua para as mulheres.

As mulheres passaram a ser localizadas por outras mulheres que viviam na prisão. Morena sabia da importância de identificá-las, mas era importante atuar em um coletivo. Com outras mulheres e homens, e com auxílio de organizações feministas da Nicarágua, fundaram Agrupación Ciudadana por la Despenalización del Aborto. Entre 2000 e 2019, estima-se que 181 mulheres foram injustamente criminalizadas por aborto ou por emergências obstétricas seguidas de morte fetal em El Salvador, sendo três delas meninas entre 10 e 14 anos. Dessas, pelo menos 66 estiveram presas por meses ou anos, e até 2020, 41 recuperaram a liberdade. Assim foi com Cindy Erazo, que passou seis anos na prisão por parir um natimorto; Alba Lorena Rodríguez, dez anos presa depois de uma complicação no parto de uma gestação decorrente de um estupro coletivo; Évelyn Hernández, três anos depois de também engravidar de um estupro e parir um natimorto. María Teresa Rivera foi sentenciada a 40 anos de prisão por um aborto espontâneo, passou quatro na cadeia e temia retornar, pois a justiça insistia na perseguição. É legalmente uma asilada política do patriarcado: vive na Suécia com um filho desde 2016.

Há seis países na América Latina e Caribe que criminalizam o aborto integralmente; há outros, como o Brasil, em que os líderes políticos acenam para o modelo salvadorenho, como fez ministra Damares Alves no Conselho de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas, na última reunião em fevereiro de 2021, ao afirmar que a “vida humana começa na concepção”. Vivemos na região do mundo que mais persegue as mulheres com a lei penal e onde mais se faz aborto. Por que essa insistência em perseguir, intimidar, prender e matar mulheres por aborto? Porque é pelo controle da reprodução biológica, isto é, pela vigilância ao corpo das mulheres, que os regimes patriarcais de poder modulam a reprodução social da vida. Não há como se dissociar a questão do aborto de políticas de igualdade de gênero, pois é pela criminalização dos direitos reprodutivos que se controlam os projetos de vida das mulheres jovens.

Talvez nenhuma mulher tenha sofrido tanto os efeitos do fanatismo do aborto quanto Manuela. O caso chegou à Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) por iniciativa das organizações Center for Reproductive Rights, Colectiva Feminista para el Desarrollo Local e a Agrupación Ciudadana por la Despenalización del Aborto, e as audiências públicas foram marcadas para os dias 10 e 11 de março deste ano. O nome Manuela é fictício para proteger o que restou da brutal tortura vivida por essa jovem trabalhadora rural, pobre e analfabeta, mãe de dois filhos miúdos. Manuela desconhecia a gravidez, estava mais inquieta com os nódulos no pescoço, fraqueza e febre, sintomas que já indicavam um câncer avançando, mas ainda não diagnosticado então. Grávida de cerca de 32 semanas, sofreu um mal-estar intenso com hemorragia e desmaio. O aborto espontâneo foi seguido de desespero para salvá-la: muito debilitada, ela não conseguia mais caminhar da casa à estrada onde haveria condução para o hospital mais próximo. Foi transportada em uma rede por familiares e vizinhos. Essa foi sua partida definitiva da casa e a última vez que viu os pais e os filhos em liberdade; só voltou a vê-los em uma única visita na prisão.

Manuela vivia sem marido na terra plantada por sua família. O pai de seus dois primeiros filhos lhes abandonou e se juntou aos milhares de salvadorenhos que migraram para os Estados Unidos —se indocumentado ou não, esse é apenas um capítulo adicional do desamparo da família. Não se sabe se a gravidez que a levou à prisão foi fruto de um relacionamento consentido ou violento, o que importou pouco à corte penal que a condenou à cadeia por “homicídio agravado”. O juiz não se intimidou em criar sua própria narrativa sobre os fatos: Manuela era uma mulher infiel, sem “instinto maternal”, que matou o filho em gesto “contrário à própria natureza”. Assim que Manuela deu entrada no hospital, foi denunciada por uma médica e coube à polícia vasculhar o casebre onde vivia, abrir a fossa e forçar o pai de Manuela, analfabeto, a registrar o feto com nome e sobrenome da família. A vítima não era mais Manuela, mas o patriarcado na forma de uma criatura não nascida, recém-nomeada para ser publicamente convocada como inocente.

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Em um trânsito judicial curto, Manuela foi condenada a 30 anos de prisão. Sem direito de defesa, a verdade de seu corpo jamais foi considerada —na cadeia foi perseguida, e sofreu as dores do câncer dormindo no chão da cela. Quase não recebeu visitas, e morreu dois anos depois da emergência obstétrica que a levou ao aborto espontâneo. Era um corpo adoecido e em sofrimento, porém ignorado pela fúria policial, judicial e médica: sua biografia transformou-se em uma construção ficcional do patriarcado —uma mulher leviana e infiel a um marido que não mais existia em sua vida. A família tentou provocar a justiça em El Salvador para que a história da morte de Manuela fosse a verdadeira vivida por seu corpo: ela morreu de um câncer sem tratamento adequado no presídio, e não porque era uma criminosa. Ela foi presa por um crime inexistente. Até mesmo o direito à verdade sobre o arquivo judicial foi negado à família, por isso o caso foi levado à CIDH.

O clima de fanatismo ao aborto instaura regimes brutais de perseguição e tortura às mulheres. Manuela morreu porque o aborto é integralmente criminalizado, morreu porque o aparato do Estado foi utilizado para persegui-la com requintes de crueldade: não importa se a verdade do vivido era já por demais sofrida para um só corpo —a pobreza, a solidão do matrimônio, o corpo adoecido pelo câncer. Agora é preciso que os magistrados da Corte se inspirem na coragem das Herreras do início desta jornada para que a decisão atravesse os limites de El Salvador e proteja outras mulheres, eternizando Manuela com o estatuto de “precedente jurídico”. Manuela está morta, e o que há a ser reparado pela Corte é a verdade do vivido, a dignidade que só a verdade da história oferece às suas vítimas.

Debora Diniz é brasileira, antropóloga, pesquisadora da Brown University

Giselle Carino é argentina, cientista política, diretora da IPPFWHR

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