_
_
_
_
_
Tribuna
São da responsabilidade do editor e transmitem a visão do diário sobre assuntos atuais – tanto nacionais como internacionais

Barragens de hidrelétricas, como a de Belo Monte, transformam Amazônia em zona de sacrifício

A exuberância da maior bacia hidrográfica do planeta está ameaçada por projetos de geração de energia que têm custos humanos e ambientais demasiadamente altos

Usina de Belo Monte.
Usina de Belo Monte.Divulgação

Maior floresta tropical do mundo, a Amazônia contempla também a maior bacia hidrográfica do planeta, cujo rio principal ―o Amazonas― é alimentado por afluentes que ramificam em mais de 1.100 rios e formam um sistema de drenagem sem igual. Cerca de um quinto de toda a água que escorre da superfície da Terra acaba nele. No entanto, toda essa exuberância ―responsável por fornecer importantes serviços ecossistêmicos para a humanidade― está ameaçada. Como os fluxos de água podem gerar muita eletricidade, a bacia do rio Amazonas tem despertado, há muito tempo, o interesse de governos, especuladores e indústrias para a geração de energia hidrelétrica por meio de barragens. De acordo com um estudo publicado em 2019 pela revista Nature Communications, pelo menos 158 barragens, incluindo pequenas barragens, operavam ou estavam em construção na bacia amazônica, e outras 351 haviam sido propostas.

Apoie nosso jornalismo. Assine o EL PAÍS clicando aqui

Mais informações
RORAIMA, BRAZIL - JUNE 30:  Aerial view from an helicopter of the Brazilian Amazon region near the border with Venezuela at the Auaris on June 30, 2020 in Roraima, Brazil. (Photo by Andressa Anholete / Getty Images)
Bolsonaro busca patrocinadores para 63 milhões de hectares da Amazônia
(FILES) This file photo taken on August 24, 2019 shows an aerial view showing smoke billowing from a patch of forest being cleared with fire in the surroundings of Boca do Acre, a city in Amazonas State, in the Amazon basin in northwestern Brazil. - More than 43 million hectares -- an area bigger than Germany -- of forest have been lost in a little over a decade in just a handful of deforestation hotspots, conservation organisation WWF said on January 13, 2021. Swathes of forest continue to be flattened each year -- mainly due to industrial-scale agriculture -- as biodiversity-rich areas are cleared to create space for livestock and crops. (Photo by LULA SAMPAIO / AFP)
Arthur Lira poderá fazer área ambiental ter saudades de 2020
Imagen aérea de una zona deforerstada en la región de Sinop, en Mato Grosso, en agosto pasado.
Apesar do recorde de desmatamento em 2020, cada vez menos fiscais atuam na Amazônia

Um dos exemplos mais notáveis é o da barragem de Belo Monte, quarto maior projeto hidrelétrico do mundo. A obra foi responsável pelo bloqueio do rio Xingu, um importante afluente do Amazonas. Seu reservatório inundou 518 quilômetros quadrados, deslocou mais de 20.000 pessoas e causou danos extensos a um ecossistema de rio que contém mais de 500 espécies de peixes, muitos deles não encontrados em nenhum outro lugar e dos quais dependem populações indígenas locais. Para completar, o ciclo sazonal natural do rio Xingu inclui um longo período de baixa vazão que impede Belo Monte de usar muitas de suas caras turbinas durante grande parte do ano.

Outro caso é o projeto Barão do Rio Branco, plano de infraestrutura na região amazônica que prevê, entre outras obras, a construção de uma hidrelétrica de 2.000 a 3.000 megawatts no rio Trombetas, que flui por uma região isolada e rica em minerais. A barragem necessária para essa hidrelétrica poderá inundar terras quilombolas e ameaçar uma das maiores praias da Amazônia, usada para a reprodução de tartarugas.

Esses são dois exemplos de como a bacia amazônica tem sido explorada sem controle pelo Governo brasileiro ―e de como os limites legais são testados constantemente. Embora essa política tenha se iniciado antes do Governo de Jair Bolsonaro, foi com o atual presidente que ela se tornou mais intensa e perigosa, em especial a partir do desmantelamento dos órgãos ambientais e sistemas de licenciamento para projetos de infraestrutura, reduzindo as proteções para a biodiversidade e para os povos tradicionais.

Quando ecossistemas fluviais são transformados em reservatórios, eles prejudicam a diversidade aquática. Barragens podem, por exemplo, bloquear as migrações anuais de peixes, como a do bagre gigante do rio Madeira. Depois que o Brasil construiu barragens no rio Madeira em 2011 e em 2013, a captura de peixes naquela que foi a segunda maior região para a pesca fluvial do mundo despencou no Brasil, Bolívia e Peru. Milhares de pessoas perderam seus meios de subsistência de pesca, e o declínio acentuado desta atividade também gerou tensões sociais que persistem até hoje na região.

As barragens também aprisionam sedimentos ricos em nutrientes, que sem elas seriam transportados pelo curso d’água. A perda de nutrientes prejudica a agricultura e afeta a cadeia alimentar da qual dependem os peixes rio abaixo, comprometendo a pesca ao longo de milhares de quilômetros de rios amazônicos.

E não para por aí: como no fundo dos reservatórios quase não há oxigênio, o mercúrio que ocorre no solo, tanto naturalmente como com acréscimos pela atividade garimpeira, pode sofrer uma reação química e ser transformado em metilmercúrio ―altamente venenoso. Altos níveis deste componente foram encontrados nos cabelos de pessoas que vivem no entorno da barragem de Tucuruí, no Pará, e de Balbina, no Amazonas. É preciso ter consciência de que os rios de fluxo livre da Amazônia são a força vital de suas florestas e dos povos indígenas que dependem deles há séculos. Tratar a Amazônia como uma zona de sacrifício para a extração de recursos naturais é injusto e desnecessário. Os custos humanos e ambientais são demasiadamente altos.

Philip Martin Fearnside é membro da Rede de Especialistas em Conservação da Natureza (RECN) e pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA)


Registre-se grátis para continuar lendo

Obrigado por ler o EL PAÍS
Ou assine para ler de forma ilimitada

_

Mais informações

Arquivado Em

Recomendaciones EL PAÍS
Recomendaciones EL PAÍS
_
_