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Coluna
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Ressuscita o tema do nascimento anômalo das flores, o “mistério abominável” de Darwin

Vi muitas vezes Bolsonaro imitando o gesto de atirar. Acredito que morreremos sem vê-lo com uma flor nas mãos ou plantando uma árvore

Mulher decora templo para a chegada do Ano-Novo Chinês em Jacarta, na Indonésia, nesta quarta.
Mulher decora templo para a chegada do Ano-Novo Chinês em Jacarta, na Indonésia, nesta quarta.AJENG DINAR ULFIANA (Reuters)
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O famoso botânico inglês Charles Darwin foi o criador da teoria revolucionária da evolução das espécies que dividiu e continua dividindo o mundo. O naturalista proclama que a criação, tanto de humanos quanto de animais e vegetais, não foi feita por Deus em seis dias, como ensina a Bíblia. A criação foi obra da evolução ao longo de milhões de anos e, portanto, humanos, animais e plantas evoluíram e se diversificaram para se adaptarem ao meio ambiente.

Darwin, no entanto, foi atormentado até o fim da vida pelo fato de que, ao contrário das outras espécies, as plantas de flores poderiam jogar por terra toda a sua teoria da evolução. Essas plantas, além de terem sido uma das últimas espécies a aparecer na Terra há cerca de 140 milhões de anos, não seguiram de fato a linha da evolução do resto da natureza, pois imediatamente se desenvolveram em milhares de formas diferentes.

O medo de Darwin que o atormentou até o túmulo é que essa exceção da aparição das plantas de flores tão diferentes das outras espécies poderia jogar por terra sua teoria da evolução. Ele qualificou essa evolução inexplicável das plantas de flores como um “mistério abominável” em uma carta a seu amigo botânico, Joseph Hooker.

Hoje, quase 162 anos depois de Darwin publicar A origem das espécies, a questão da anomalia das plantas com flores, que tanto preocupou o famoso naturalista, voltou à imprensa após uma interessante reportagem da BBC que foi imediatamente seguida por muitas outras publicações e nas redes.

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Embora o nascimento anômalo das plantas de flores seja apenas um detalhe na obra da evolução das espécies, torna-se de atualidade diante do crescimento em todo o mundo das teorias negacionistas como a da Terra plana, ou que o vírus da pandemia foi criado em laboratório pelos russos para infestar o mundo, ou seja, foi Deus quem criou o mundo de acordo com o relato da Bíblia. São os que não aceitam que o Homo sapiens venha de uma evolução dos macacos.

Ocorre-me que, como a ciência ainda não foi capaz de decifrar a evolução das flores diferente daquela do resto da criação, poderíamos perguntar aos poetas e às crianças. Eles com suas imagens e metáforas e ousadias de linguagem poderiam ser capazes de nos decifrar senão a origem das flores, mas o mistério de beleza que encerram e por que as vemos como algo divino.

As flores tornaram-se, efetivamente, o símbolo do amor e da paixão, talvez por serem o órgão de reprodução e estarem ligadas à fertilidade. As flores estão sempre relacionadas com o amor e a amizade. Ninguém bate com uma flor. Atirar flores nunca é símbolo de violência.

Hoje sabemos cientificamente que as árvores se comunicam e se ajudam através das raízes e há quem diga que conversar com as plantas as faz crescer. São coisas e mistérios ainda a decifrar, mas que, por exemplo, para crianças com capacidade de fantasia é algo normal. Certa vez, disse a uma menina de cinco anos que as flores no jardim falavam umas com as outras. Sem se surpreender, ele se aproximou de uma roseira e encostou o ouvido em uma de suas flores para ouvir se falava.

As crianças são mais abertas aos símbolos e metáforas do que os adultos. Para elas, que as estrelas chorem ou que uma sombra possa ser plantada, é algo normal.

Às vezes, os professores do ensino fundamental ficam surpresos ao ver com que facilidade poemas considerados para adultos acabam sendo compreendidos normalmente pelas crianças. Somos nós, adultos, que nos assustamos com a poesia e suas metáforas. De alguma forma a poesia destrói nossas certezas petrificadas e remove nosso inconsciente. Não com as crianças, porque são mais abertas ao mistério e ao impossível.

Voltando às flores, com suas 260.000 espécies, elas se tornaram um símbolo de amor e felicidade, de amizade e reconciliação. Receber flores é sempre um gesto de amizade, nunca de ameaça. Um texto atribuído a Augusto Branco reflete como atirar flores é um símbolo de reconciliação.

“Retribua com flores a todas pedras que te atirarem. Haverá um momento em que as pedras de teus inimigos acabarão, e assim eles só poderão atirar em você as próprias flores que receberam de ti.”

Melhor do que mistério abominável, Darwin poderia ter qualificado de mistério maravilhoso saber que as árvores de flores são uma misteriosa exceção no processo da evolução ainda a ser decifrado.

Hoje o mundo vive um holocausto da natureza. O capitalismo foi destruindo florestas inteiras para lucro econômico e poluindo a Terra. Hoje o Brasil é um triste campeão da devastação criminosa da Amazônia e de suas riquezas naturais, transformando as florestas que sustentam a vida com seu oxigênio em pasto para o gado, e fazendo um genocídio com os nativos, que desde sempre foram os melhores defensores da natureza.

Talvez este repentino interesse pelo mistério do nascimento das flores derive da preocupação que se tem com a destruição do meio ambiente. Principalmente aqui no Brasil, onde seu presidente Bolsonaro é um dos mais insensíveis do mundo à guerra contra a destruição do meio ambiente.

Vi muitas vezes Bolsonaro com armas nas mãos, imitando o gesto de atirar. Sua política é a do negacionismo, da violência e da morte. E acredito que morreremos sem vê-lo com uma flor nas mãos ou plantando uma árvore.

Dedico esta coluna a todos os poetas e amantes das flores e do meio ambiente. A todos aqueles que lutam, às vezes sacrificando suas vidas, para defender as riquezas da criação e para proteger os indígenas, que durante milhões de anos foram e continuam sendo os melhores guardiões da natureza.

Juan Arias é jornalista e escritor, com obras traduzidas em mais de 15 idiomas. É autor de livros como ‘Madalena’, ‘Jesus esse Grande Desconhecido’, ’José Saramago: o Amor Possível’, entre muitos outros. Trabalha no EL PAÍS desde 1976. Foi correspondente deste jornal no Vaticano e na Itália por quase duas décadas e, desde 1999, vive e escreve no Brasil. É colunista do EL PAÍS no Brasil desde 2013, quando a edição brasileira foi lançada, onde escreve semanalmente.

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