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Coluna
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O que você fez quando faltou oxigênio para respirar no Brasil?

No país onde morre gente por falta de UTI e cuidados básicos, sobram bilhões para eleger o comando do Congresso

Um manifestante segura uma faixa que diz "Oxigênio respira Brasil" durante um protesto contra o presidente Jair Bolsonaro em Brasília.
Um manifestante segura uma faixa que diz "Oxigênio respira Brasil" durante um protesto contra o presidente Jair Bolsonaro em Brasília.ADRIANO MACHADO (Reuters)

E quando Irene, 4 anos, me perguntar, em um futuro não tão distante: pai, o que vocês brasileiros adultos fizeram na semana em que pessoas morreram por falta de um tubo de oxigênio e o esquema político bolsonarista liberou R$ 3 bilhões para comprar a eleição dos presidentes da Câmara e do Senado?

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Talvez eu use uma desculpa científica: ah, filha, por causa da pandemia da covid-19, evitamos aglomerações e protestos ―no máximo saímos em carreatas ou batemos umas panelas. Ah, filhinha, como “detrator” do governo, blasfemei aos céus e às redes sociais. Ah, filhota, que vergonha. Tentarei explicar o inexplicável de como nada aconteceu no Brasil apesar dos pesares. Ah, filha, você está me deixando gago de novo diante de perguntas difíceis.

Esse exercício de futurologia me põe sem fôlego. O que vocês que respiravam sem ajuda de aparelhos fizeram pelos que estavam sem ar nos hospitais de Manaus e arredores da selva?

Filha, ficamos na treta com os bolsominions e os robôs do Gabinete do Ódio. Talvez arrisque uma resposta que soará enigmática, com estilo de ficção científica do escritor Kurt Vonnegut. Que ela não saiba que também perdíamos um tempão tretando entre nós mesmos no ringue à esquerda. Certamente terei vergonha de entrar nos detalhes tão pequenos de nossas picuinhas.

Para não ficar mais ruborizado do que estarei nesse diálogo, talvez diga à milha filha que havia gente pior ―é sempre um conforto psicológico, uma fuga, um alívio, ufa. Sim, filha, uns 30% dos brasileiros ainda apoiavam aquele estrupício, aquele febre do rato, aquele bucho de lobó, aquele alma sebosa. Não ria, Irene, falo sério, corra ao Google e verás. Lembro vagamente que uma pesquisa ainda o colocava como favorito na corrida às eleições de 2022.

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De volta ao presente. Ainda livre das perguntas pesadas que Irene me fará em breve, tive que responder apenas coisas leves nos últimos dias deste janeiro.

Pai, o que é boi de piranha?, indagou a pequena diante de um comentário do amigo Fernando Molica (CNN), salvo engano. Essa foi moleza. Contei como uma fábula e ela dormiu cedo e feliz. Tive o cuidado de não usar o general da ativa Eduardo Pazuello, ministro da Saúde, como personagem, a exemplo do noticiário televisivo. O boi do conto era um bicho de quatro patas mesmo; a piranha se tratava do inocente peixe carnívoro. Tudo muito literal, chega de maltratar as metáforas animais a essa altura.

No dia seguinte, durante o “Jornal da Maju”, como Irene chama na intimidade, a explicação solicitada foi sobre uma criatura mui familiar a este velho menino dos sertões: o bode. Óbvio, o bode expiatório. Disse que era igual ao bichinho que ela havia conhecido na roça do vovô do Cariri. Com uma pequena diferença: na política, o bode costuma pagar pela sua merda e principalmente pela sujeira do chefe do chiqueiro. E não se trata, filha, nesse episódio humano, das assépticas pílulas do excremento caprino.

Poderia ter desprezado o general da Saúde e sido mais pedagógico. Como qualquer fiel bolsonarista da bancada neopentecostal tem conhecimento, inclusive a deputada e pastora Flordelis (PSD-RJ), a expressão bode expiatório vem do “Dia da Expiação”, está lá no livro bíblico do Levítico. Em uma festa religiosa dos hebreus, dois bodes eram postos diante do povo e um deles era escolhido para ser sacrificado na companhia de um touro. Com o sangue dos dois, os religiosos tingiam as paredes dos templos em cerimônia.

Não me venha com perguntas para me deixar em sinuca futurista, minha filha. Sobre os bichos do noticiário de hoje, sem problemas, aplicaremos o Esopo ou a fazenda do tio George Orwell.

Parabéns pelo aniversário neste dia 2 de fevereiro, Irene, que as águas de Iemanjá e os ventos de Caymmi nos abençoe e proteja.

Xico Sá, escritor e jornalista, é autor de “Os machões dançaram -crônicas de amor & sexo em tempos de homens vacilões” (editora Record), entre outros livros.

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