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Editoriais
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A escravidão moderna

O caso de Madalena, revelado em Minas Gerais, evidencia a persistência de intoleráveis abusos aos direitos humanos

Madalena Gordiano durante uma entrevista em dezembro.
Madalena Gordiano durante uma entrevista em dezembro.GLOBO

O olhar sobre a escravidão adquiriu notoriedade nos últimos anos a partir dos ataques à figura de escravistas que, como já se analisou longamente, não podem ser julgados sob a ética e as normas do presente. Que o tráfico de escravos foi um capítulo aterrador, nefasto e ainda não superado é uma questão sempre digna de revisitar, embora partindo desse princípio de extemporaneidade que o situe em sua perspectiva histórica. O que exige um olhar muito exigente do presente é a herança viva da escravidão que perdura entre nós. Muito mais extensa do que se costuma considerar, e com tentáculos enormes em todos os contextos.

O resgate de Madalena Gordiano, uma brasileira capturada por uma família de Minas Gerais quando tinha pouco mais de oito anos e pedia esmola, e à qual serviu por quase 40 anos como empregada sem salário, sem direitos, sem educação e inclusive explorada economicamente como um ativo sob sua propriedade, deve revirar consciências. E abrir debates.

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Gordiano, que ao ser libertada em novembro, após a denúncia de um vizinho, tinha 46 anos e se expressava com dificuldade, é um símbolo do legado da escravidão que perdura no Brasil, o último país das Américas a aboli-la, após 350 anos de uma exploração que deixou uma herança ainda insuportável. Trata-se de um caso extremo, que está nas mãos dos juízes, mas nos recorda que a exploração de pessoas sem recursos ― especialmente se forem mulheres ― e sem o poder conferido pela raça branca corrói nosso universo.

No Brasil, os negros e mestiços, herdeiros dos africanos, constituem 56% da população, mas sua expectativa de vida, sua renda, sua formação e sua segurança são sensivelmente menores que a da população branca. Cerca de 75% das vítimas de homicídios são negros ou mestiços. Nos últimos 25 anos, foram resgatadas no Brasil 55.000 pessoas sob condição análoga à escravidão, uma tarefa ainda mais complicada no caso das domésticas.

A desigualdade gerada pelo escravismo e que perdura atualmente é parte dos debates abertos no continente americano, dos protestos do Black Lives Matter nos Estados Unidos à mencionada ofensiva contra as estátuas escravistas. Mas a fenomenologia do abuso contra direitos básicos, com sabor a escravidão do século XXI, é plural e em muitos casos não tem a ver com um componente racista: inclui de crianças militarizadas à exploração sexual e trabalhos forçados de diversos tipos. A linha de avanço que une o Renascimento, o Iluminismo, a Declaração Universal dos Direitos Humanos e outras conquistas mais recentes ainda tem um longo caminho pela frente, inclusive nos países mais avançados. Não cabe complacência de nenhum tipo.

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