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Eleições Brasil 2020
Tribuna
São da responsabilidade do editor e transmitem a visão do diário sobre assuntos atuais – tanto nacionais como internacionais

Em quem votaria se você não soubesse sua posição na sociedade?

Essa provocação resgata um debate iniciado por John Rawl, para quem esse desconhecimento pode influenciar as decisões, tornando-as mais propensas à criação de um ambiente mais justo

Mulher vota em São Paulo neste domingo.
Mulher vota em São Paulo neste domingo.Sebastiao Moreira (EFE)
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Election workers wear face shields and masks at a polling station during the municipal elections in Sao Paulo, Brazil, November 29, 2020. REUTERS/Amanda Perobelli
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Domingo encerraremos o ciclo das eleições municipais de 2020 e motivado por este evento importante da democracia brasileira propomos o seguinte desafio, que a cada um fosse feita a seguinte pergunta: em quem você votaria se você não soubesse quem você é? Essa provocação tem a intenção de resgatar parte do debate iniciado por John Rawls para pensar como agentes decidiriam sobre diferentes políticas públicas partindo da ideia de que eles próprios não possuem conhecimento sobre suas posições sociais. Para Rawls, esse desconhecimento influenciaria as decisões, tornando-as mais propensas à criação de um ambiente mais justo. Exemplificando grosseiramente, é como se na Alemanha nazista alguém que tomasse decisões sobre políticas públicas desconhecesse sua posição na sociedade, mas que em certo momento precisaria decidir se homossexuais seriam ou não levados para campos de concentração. Como esse decisor não tem noção de sua posição social, tenderia a pensar e a agir considerando a possibilidade de que ele mesmo poderia vir a ser homossexual, e portanto, seria afetado por sua própria decisão. Estratégias como essa podem ajudar no estabelecimento de consensos e na definição de políticas públicas com maior justiça social. Por diversas razões, o momento que vivemos é oportuno para usarmos estratégias como essa em nossas decisões.

Ninguém esperava quantos desafios passaríamos neste ano de 2020. Com exceção daqueles que já estavam em curso, como crise econômica, o ataque às instituições da República e democráticas partindo de apoiadores do próprio presidente da República, e as investigações de corrupção recaindo sobre a família presidencial já seriam suficientes para marcar o ano como um dos mais complexos da história brasileira. Mas 2020 se mostrou muito mais desafiador e trágico com a instalação da pandemia do novo coronavírus.

Comparando realidades de diversos países a respeito das taxas de mortes proporcionais ao tamanho da população, sabemos que o efeito da disseminação do vírus sobre o Brasil tem sido especialmente devastador. Chegamos ao final do ano com centenas de milhares de mortos sem que o vírus esteja dando sinais de controle. Neste exato momento, diferentes regiões do Brasil assistem a um aumento da taxa de infecção, na superlotação de leitos em hospitais da rede particular e pública e, consequentemente, ao avanço do número de cadáveres pela doença. Partindo desse cenário e inspirados pela estratégia de Rawls, de não saber quem você é na sociedade, recolocamos a pergunta: que líder você escolheria para conduzir o combate à pandemia?

Em estudo recente, realizado em 2020, conduzido em 67 países com mais de 46.540 entrevistados, incluindo o Brasil (um dos autores deste texto é um dos pesquisadores responsáveis pelo projeto), verificou-se que o senso de pertencer à uma nação e se identificar com ela foi o melhor preditor de respostas de adesão às políticas públicas de combate à pandemia, de aumento nos cuidados de higiene e no distanciamento físico. Ou seja, se sentir parte de um grupo está positivamente relacionado a apoiar as medidas que o protejam. Alguns atores políticos muitas vezes tentam definir o que seria a identidade nacional. Mas na verdade o que eles estão fazendo é fomentar um nacionalismo extremo atrelado a um determinado segmento da sociedade, algo que chamamos de narcisismo coletivo (valorização extrema do seu próprio grupo em detrimento dos outros). Neste estudo, foi a identidade nacional mais ampla ― aquela que cumpre a função de integrar os indivíduos em prol do bem-coletivo ― que se associou ao combate à pandemia. Aqui a primeira lição sobre o líder que deveríamos escolher caso não soubéssemos quem somos poderia ser: um líder que valorize a população de forma indiscriminada e que não fomente a valorização de grupos específicos como se estes fossem os únicos merecedores de cuidado. Nesse sentido, líderes menos paroquialistas parecem mais propensos a pensar o bem-estar coletivo.

Países como a Nova Zelândia, Austrália, Cingapura, Vietnã, Alemanha e Tunísia são alguns entre outros tantos que se somam a um conjunto de nações cujas políticas de contenção do vírus têm sido bem-sucedidas. Por outro lado, o Brasil está inserido no conjunto dos países com maior número de mortes tanto em termos proporcionais quanto em números absolutos. As variáveis que explicam essas diferenças entre países bem e mal sucedidos no combate à pandemia são inúmeras, mas uma delas recai diretamente na atuação dos líderes e na compreensão do seu papel como indutor de comportamentos coletivos e altruístas. Isso diz muito sobre como lideranças brasileiras têm se comportado diante das ameaças do vírus.

Como exercício reflexivo, optamos por discutir essas questões aproveitando o debate sobre as eleições em curso no Brasil de 2020. Acreditamos que, por este ser um ano atípico, os pleitos municipais podem servir como espaços importantes para entender o comportamento dos indivíduos assim como a percepção dos mesmos sobre as lideranças. O primeiro turno das eleições municipais brasileiras trouxe algumas novidades que merecem destaque. Comparando, grosseiramente, a escolha do eleitor de 2018 e 2020 (e reconhecendo que sejam pleitos diferentes e com expectativas distintas), os votos do primeiro turno das municipais de 2020, pareceram que houve uma maior rejeição a políticos ultraconservadores e a preferência por partidos e políticos ligados a política tradicional brasileira. Pautas identitárias pareceram ter mais espaço na eleição, e candidaturas de mulheres, negros, pardos, indígenas, população LGBTQI+ emergiram em todo o país, sugerindo maior espaço para representatividade. Todas essas, notícias, sem dúvida, são passos positivos na construção da representação política. Do ponto de vista comportamental, mostrou também que bandeiras progressistas têm terreno fértil no país. Embora seja conhecido que as eleições municipais estejam mais voltadas para as agendas públicas locais, como citamos acima, é importante salientar que prefeitos e vereadores entregam votos para deputados federais em busca de reeleição através de suas forças políticas locais, e por sua vez, bancadas federais entregam emendas pros prefeitos empregarem em suas prefeituras.

Pensar sob o véu da ignorância, como no experimento proposto por Rawls, pode servir como um recurso interessante e necessário para expressar solidariedade e cooperação entre os indivíduos, além de servir como uma forma de mobilização para além das nossas bolhas. E a escolha das lideranças, por sua vez, faz parte e é uma etapa fundamental do processo.

Paulo Boggio é coordenador do Laboratório de Neurociência Cognitiva e Social do Mackenzie

Carolina Botelho é cientista política e pesquisadora na PUC do Rio de Janeiro e na Escola Nacional de Ciências Estatísticas do IBGE

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