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Coluna
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E se o mundo, de repente, virasse um grande Amapá?

Nada nem ninguém está preparado para enfrentar o terceiro maior risco iminente de extinção da vida humana na Terra: o cataclisma planetário gerado por uma tempestade geomagnética

Maria Félix Carvalho, 58 anos, durante o apagão em Macapá, no Amapá. Imagem do dia 13 de novembro.
Maria Félix Carvalho, 58 anos, durante o apagão em Macapá, no Amapá. Imagem do dia 13 de novembro.Andre Borges

Nos últimos dias o Brasil assiste assombrado às devastadoras consequências do apagão elétrico que atingiu o estado do Amapá em 3 de novembro, deixando mais de 90% da sua população sem acesso a um dos maiores pilares da modernidade humana: a eletricidade, para qual todos nós subcontratamos, quase que displicentemente, um sem número de tarefas essenciais à nossa sobrevivência. Sem energia elétrica brotando quase que milagrosamente das tomadas, toneladas de alimentos apodreceram dentro de refrigeradores amapaenses inertes e impotentes. Sem sua força vital, bombas não conseguiram mais retirar água potável de poços artesianos para o consumo nas residências e nos hospitais. Sem internet, televisão, rádio e sem formas de carregar seus telefones celulares, a população do Amapá, quase que instantaneamente, se desconectou do resto do planeta.

Neste cenário apocalíptico, nas palavras do repórter do EL PAÍS Afonso Benites, Macapá, a capital do estado, que eu tive o enorme prazer de visitar alguns anos atrás, vive dias medievais desde o início do mês. A metáfora é extremamente apropriada, uma vez que, de repente, tudo aquilo que cada um de nós se acostumou a considerar desde o nascimento como um direito adquirido e irrevogável, o acesso à eletricidade abundante e relativamente barata, sumiu da realidade cotidiana vivida —ou sofrida— pelos nossos irmãos e irmãs macapaenses.

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Segundo reportagem de Diogo Magri, publicada no EL PAÍS em 6 de novembro, o apagão aparentemente se originou como consequência de uma forte tempestade que atingiu Macapá e que, de acordo com as autoridades locais, teria gerado descargas elétricas que atingiram o transformador 1 da Subestação de Macapá, de propriedade da empresa LMTE que provê eletricidade para boa parte do estado.

Ao tomar conhecimento desses fatos, eu imediatamente senti uma típica sensação de déjà vu. Digo isso porque os eventos do Amapá me transportaram imediatamente a uma madrugada de céu estrelado em meados de 2018, no exato momento em que eu escrevia um parágrafo, sentado no pátio da minha casa em Durham, Carolina do Norte. Nestas poucas linhas, inclusas num dos capítulos finais do meu último livro, O Verdadeiro Criador de Tudo: como o cérebro humano esculpiu o Universo como nós o conhecemos (editora Planeta), eu listei aqueles que poderiam ser os três maiores riscos iminentes de extinção que a espécie humana correria nos próximos anos ou décadas. Evidentemente, no topo desta lista não poderia faltar a proverbial colisão de um meteoro de massa grande o suficiente para eliminar toda a vida na Terra, em questão de meses. Os dois outros itens, todavia, teriam suas origens em enormes fragilidades criadas pelo modelo de desenvolvimento e crescimento adotados pela nossa espécie desde a revolução industrial do século XVIII. Deste modo, o segundo item da minha lista se referia a uma pandemia, causada por um vírus infeccioso e letal o suficiente para se espalhar pela malha aeroviária global e colocar o mundo todo de joelhos numa questão de semanas e, eventualmente, eliminar o nosso rastro do planeta. Soa familiar? Em 2018 parecia apenas uma hipótese acadêmica, mas hoje, bem, eu não preciso dizer muito mais.

Se a pandemia de covid-19 expôs enormes fragilidades decorrentes de um modelo econômico ganancioso e voraz que invade e destrói ecossistemas pristinos (onde uma infinidade de vírus convivem em equilíbrio com seus hospedeiros), promove o aquecimento global de forma desenfreada e gera níveis históricos de desigualdade socioeconômica, nada nem ninguém estaria preparado para enfrentar o terceiro maior risco iminente de extinção da vida humana na Terra: o cataclisma planetário gerado por uma tempestade geomagnética, criada por um fenômeno conhecido em inglês como coronal mass ejection (CME) ou, em português coloquial, uma ejeção parcial da corona solar.

Muito bem conhecida por astrônomos e astrofísicos, CMEs de várias magnitudes já ocorreram ao longo da história do nosso sistema solar e, para nosso interesse mais provinciano enquanto espécie, nos últimos cem mil anos. Basicamente, uma CME ocorre quando o Sol ejeta para o vácuo sideral uma quantidade significativa do plasma que o circunda, a dita corona solar, envolto num poderoso campo magnético. CMEs geralmente surgem de um ponto da superfície do Sol onde manchas solares passam a se aglomerar rapidamente e a emitir faíscas gigantescas. Uma vez parida, uma CME é carregada pelo sopro do chamado vento solar, como um veleiro cósmico com todas as velas içadas e inchadas no limite, espalhando-se por todo o sistema solar.

Nos idos da madrugada de 1 para 2 de setembro de 1859, uma dessas CMEs levou apenas 17,6 horas para cobrir os 150 milhões de quilômetros que nos separam do Sol. E, no momento que este mero bocejo solar atingiu o nosso canto do Universo, ele, o Sol, produziu a maior deformação experimentada pelo campo magnético da Terra até hoje. A magnitude deste impacto foi tão tremenda que dela resultou a maior tempestade geomagnética jamais testemunhada na face do planeta por membros na nossa espécie. Conhecida como o Evento Carrington, em homenagem a Richard C. Carrington, um dos astrônomos britânicos que documentou a ocorrência desta CME, esse “toró magnético” que nem mesmo Thor ou Zeus seriam capazes de imaginar, muito menos criar, produziu uma aurora boreal, que se espalhou de polo a polo do planeta, incluindo as regiões próximas ao Equador, por dias a fio. Diante de uma verdadeira explosão dos céus, como se estivessem testemunhando uma queima de fogos de toda a Via Láctea, multidões espalhadas pelos quatro cantos do planeta —Austrália, Panamá, Brasil, China Japão e em muitas partes dos EUA e Europa— relataram terem acordado no meio da madrugada como se estivessem no meio do dia. Relatos de americanos deram conta de que a quantidade de luz no céu foi tão grande que galos começaram a cantar no meio da noite e pessoas começaram a ler os jornais no meio da madrugada, sentadas nas suas varandas, sem a necessidade de nenhuma luz artificial.

Mineiros das minas das Montanhas Rochosas, no Colorado (EUA), aparentemente começaram a consumir o café da manhã às 2 da madrugada, achando que o dia já havia raiado. Como o mundo em 1859 não havia ainda sucumbido a um modelo de vida totalmente dependente da eletricidade, apenas alguns telégrafos na Inglaterra torraram no momento em que a tempestade geomagnética atingiu a superfície terrestre. “Not a big deal”, diriam os americanos.

Quase uma década atrás, em 2012, uma CME aproximadamente da mesma magnitude do Evento Carrington foi expelida pelo Sol novamente. Para nossa sorte, essa cusparada de plasma e magnetismos foi levada pelo vento solar para um outro quadrante do sistema solar e nunca atingiu a Terra. Todavia, não há muita dúvida de que a qualquer momento uma CME, igual ou ainda maior do que a que atingiu a Terra em 1859, será emitida pelo Sol e singrará, inexoravelmente, pelos mares siderais, com o número da Terra escrito na sua proa. E, neste instante, nós teremos menos de 24 horas para imaginar o que fazer num mundo onde todos os equipamentos elétricos e eletrônicos, toda infraestrutura global de comunicação, transporte, refrigeração de alimentos, purificação de água, para mencionar apenas alguns exemplos, será pulverizada instantaneamente pela Mãe de Todas as Tempestades Geomagnéticas (MTTGmags, sigla de autoria do autor).

Se vocês acham que a pandemia de covid-19 causou transtornos, o que dizer de um mundo pós MTTGmags? Um planeta onde todos os satélites em órbita, responsáveis pelo sistema de GPS e outros serviços de comunicação interplanetária, internet, todos os celulares, todas as estações de rádio e TV, todas as baterias de automóveis, todos os sistemas de purificação de água e esgoto, todas as bombas elétricas, todos os computadores e tabletes, todas as torres de controle de aeroportos, todos os elevadores, todos os refrigeradores, todos os fornos de micro-ondas e, pior de tudo, todas as transmissões de Oscar Ulisses dos jogos do Palmeiras, num milissegundo, simplesmente desaparecessem do Cosmos, e o maior de todos os silêncios de toda história se instalasse, diante dos nossos olhos, sem prazo de revogação? Sim, porque de acordo com cálculos do governo americano seriam precisos meses ou mesmo anos para substituir apenas os gigantes transformadores localizados na costa leste americana, a um custo de trilhões de dólares. Neste dia, todo terráqueo iria dizer: Macapá é aqui!

Não é à toa que os egípcios consideram Ra, o Deus Sol, a sua maior divindade. Não é à toa que, no maior golpe de marketing político de toda a história, um faraó egípcio se aliou a seus sacerdotes e foi proclamado como a encarnação do Deus Sol na Terra. O que poderia ser mais recompensador para milhões de devotos egípcios, geração após geração, do que se dedicar à construção de pirâmides que permitissem ao Deus Sol abandonar seu corpo mortal e retornar aos céus para garantir a fartura e o sobreviver dos seus súditos? Do Sol vem a fonte de informação em potencial que permitiu a toda forma de vida —inclusive a nossa— florescer nesta insignificante rocha azul, perdida numa quebrada esquecida do Universo. Mas dele também pode vir o sopro infernal que porá fim à nossa aventura sideral. Think about it!

Adiantando-se a este cenário dantesco, o governo brasileiro decidiu assumir mais uma vez papel de vanguarda no movimento global em prol do retorno à Idade Média, voluntariando-se de forma resoluta para realizar um experimento, não mais restrito ao Amapá, mas agora a nível nacional. Após, num piscar de olhos, rebaixar a economia brasileira do nono para o décimo-segundo lugar no ranking mundial, este novo experimento do nosso (des) governo federal criará de imediato todas as condições para que o próximo apagão tupiniquim se espalhe do Oiapoque (que está com luz hoje, graças ao Big Bang) ao Chuí, permitindo que outros países testemunhem, em primeira mão, o que uma CME poderia causar no resto do planeta. Donald “you are fired” Trump agradeceu de imediato o favor do seu vassalo tupiniquim. Esse milagre da pujante e sempre inovadora incompetência nacional inicia-se com o plano do excelso Ministro (sic) da Economia (sic plus) em impor, a toque de caixa, a privatização da Eletrobrás, de forma a garantir que o (des) governo do Mito (sic google plus) conduza o Brasil varonil de volta ao Paleolítico Superior, a passos largos e orgulhosos. Desta forma, quando o último brasileiro deixar o país —a pé, ressalte-se—, ele não terá que se dar ao trabalho nem de apagar a luz. Isso porque, este último ato inconveniente de resignação e submissão nacional já terá sido concretizado plenamente, em nosso nome, e em definitivo, sem a necessidade de procuração ou firma reconhecida, pelo pelotão avançado do retrocesso, que hora singra totalmente desimpedido, tal qual uma tempestade solar, sob os céus do Cruzeiro do Sul. Talkey?

Miguel Nicolelis é um dos nomes com maior destaque na ciência brasileira nas últimas décadas devido ao trabalho no campo da neurologia, com pesquisas sobre a recuperação de movimentos em pacientes com deficiências motoras. Para a abertura da Copa de 2014, desenvolveu um exoesqueleto capaz de fazer um jovem paraplégico desferir o chute inicial do torneio. Incluiu recentemente à sua lista de atividades a participação no comitê científico criado pelos governadores do Nordeste para estudar a pandemia da covid-19. Twitter: @MiguelNicolelis

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