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Tribuna
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Reeleição e crises

Cabe aqui um ’mea culpa’. Permiti, e por fim aceitei, o instituto da reeleição. Visto de hoje, entretanto, imaginar que os presidentes não farão o impossível para ganhar a reeleição é ingenuidade

Jornais do dia 16 de junho de 2019 que mostravam a reeleição da ex-presidenta Dilma Rousseff.
Jornais do dia 16 de junho de 2019 que mostravam a reeleição da ex-presidenta Dilma Rousseff.VANDERLEI ALMEIDA (AFP)
Fernando Henrique Cardoso

Recordo-me da visita que André Malraux, na ocasião ministro da Cultura de De Gaulle, fez ao Brasil. Esteve na USP, na rua Maria Antônia, onde funcionava a FFCL, e expôs no “grande auditório” (que comportava não mais de umas cem pessoas) sua visão de Brasília, obra de Juscelino Kubitschek. Malraux estava extasiado, comparava o plano diretor da cidade não a um pássaro (coisa habitual na época), mas a uma cruz. Com sua verve inigualável, dizia em francês o que não estávamos acostumados a ouvir em português: fazia o elogia da obra. Este não era o sentimento predominante, pois a víamos mais como desperdício, que induzia a inflação do que como um “sonho”, um símbolo.

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Brazil's President Jair Bolsonaro looks on next to Brazil's Economy Minister Paulo Guedes during a ceremony to launch a program to expand access to credit at the Planalto Palace in Brasilia, Brazil, August 19, 2020. REUTERS/Adriano Machado
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View of a real-size picture of Brazilian architect Oscar Niemeyer (1907-2012), designer of the civic buildings of the Brazilian capital, outside the first residential block of Brasilia on January 10, 2020. - On April 21, 1960, Brazil inaugurated to great fanfare its new capital Brasilia, a futuristic city created out of nothing and based on numerous architectural masterpieces. (Photo by Sergio LIMA / AFP)
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Brazil's President Jair Bolsonaro gestures during a ceremony at the Planalto Palace in Brasilia, Brazil, September 2, 2020. REUTERS/Adriano Machado
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A visão dominante era negativa, principalmente no Rio (que perderia a condição de capital da República), em São Paulo, e daqui para o Sul. O gasto era grande e os recursos minguados. Eu compartilhava deste sentimento negativo, e olha que um de meus bisavôs fizera parte, no Império, da “missão Cruls”, que demarcara o território da futura capital do Brasil... Brasília foi construída onde desde aquela época se previa fazer a capital do país.

Não é que Malraux tinha razão? Não que a obra deixasse de ser custosa ou mesmo impulsionadora da inflação. Mas um país também se constrói com projetos, sonhos e, quem sabe, alguns devaneios... Juscelino fez muitas coisas, algumas más, mas não é por elas que é lembrado. Brasília sim, ficou como sua marca. Não o conheci. Vi-o pessoalmente uma vez, sentado solitário em um banco no aeroporto de “sua” cidade. Aproximei-me e o saudei; pouca conversa, mas muita admiração. Ele já fora “cassado”. Passa o tempo e fica na memória das pessoas sua “obra”, Brasília.

Não estou recomendando que Bolsonaro faça algo semelhante. Não sou ingênuo para pretender que minhas palavras cheguem ao presidente e que, se chegarem, serão ouvidas.... Como estive no Planalto, as vezes me ponho no lugar de quem ocupa aquela cadeira espinhosa: é normal a obsessão por fazer algo, para o povo e para o país. Como o presidente será julgado são outros quinhentos. Maquiavel já notava que os chefes-de-estado (os grandes homens... na linguagem dele) dependem não só de astúcia, mas da fortuna (da sorte).

O governo atual não teve sorte. São de desanimar os fatores contrários: a pandemia, logo depois de uma crise econômica que vem de antes, com o PIB crescendo pouco (se é que...) e com uma “base política” que depende, como sempre, mais do “dá-lá-toma-cá” do que da adesão popular a algo grandioso. Ganhou, e levou; mas mais pelo negativo (não ao PT e aos desatinos financeiros praticados) do que pelo sim a uma agenda positiva.

Agora se tem a sensação (pelo menos, eu tenho) de que o Presidente não está bem acomodado na cadeira que ganhou. É difícil mesmo. De economia sabe pouco; fez o devido: transferiu as decisões para um posto Ipiranga. Este trombou com a crise, pela qual não é responsável. Não importa, vai pagar o preço: tudo que era seu sonho, cortar gastos, por exemplo, vira pesadelo, terá de autorizá-los. E pior, como é economista sabe que a dívida interna cresce depressa e, sem existir mais a alternativa da inflação, que tornava aparentemente possível fazer o que os presidentes querem (atender a todos ou à maioria e ganhar a reeleição), só resta o falatório vazio. Este cansa e é ineficaz em um Congresso que, no geral, também quer gastar e pensa nas eleições.

Cabe aqui um mea culpa. Permiti, e por fim aceitei, o instituto da reeleição. Verdade que, ainda no primeiro mandato fiz um discurso no Itamaraty anunciando que “as trevas” se aproximavam: pediríamos socorro ao FMI. Não é desculpa. Sabia, e continuo pensando assim, que um mandato de quatro anos é pouco para “fazer algo”. Tinha em mente o que ocorre nos EUA. Visto de hoje, entretanto, imaginar que os presidentes não farão o impossível para ganhar a reeleição é ingenuidade. Eu procurei me conter. Apesar disso fui acusado de “haver comprado” votos favoráveis à tese da reeleição no Congresso. De pouco vale desmentir e dizer, que a maioria da população e do Congresso era favorável à minha reeleição: temiam a vitória... do Lula. Devo reconhecer que historicamente foi um erro: se quatro anos são insuficientes e seis parecem ser muito tempo, ao invés de pedir que no quarto ano o eleitorado dê um voto de tipo “plebiscitário”, seria preferível termos um mandato de cinco anos e ponto final.

Caso contrário, volto ao tema, o ministro da Economia, por mais que queira ser racional, terá de fazer a vontade do Presidente. Não há o que a faça parar, muito menos um ajuste fiscal, por mais necessário que seja. E tudo que o Presidente fizer será visto pelas mídias, como é natural, como atos preparatórios da reeleição. Sejam o não.

Acabar com o instituto da reeleição e, quem sabe, propor uma forma mais distritalizada de voto são mudanças a serem feitas. Esperemos...

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