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Pandemia de coronavírus
Coluna
Artigos de opinião escritos ao estilo de seu autor. Estes textos se devem basear em fatos verificados e devem ser respeitosos para com as pessoas, embora suas ações se possam criticar. Todos os artigos de opinião escritos por indivíduos exteriores à equipe do EL PAÍS devem apresentar, junto com o nome do autor (independentemente do seu maior ou menor reconhecimento), um rodapé indicando o seu cargo, título académico, filiação política (caso exista) e ocupação principal, ou a ocupação relacionada com o tópico em questão

Que interesse têm os pobres do Brasil em distinguir entre Bolsonaro e Lula?

Ocupados como estão com a sobrevivência, muitos não têm tempo nem forças para as batalhas políticas e sociais. Qualquer Governo será bem visto por eles se lhes fizer chegar as sobras da opulência e do desperdício

Bolsonaro cumprimenta apoiadores que protestam em Brasília contra o Congresso e o STF, em 17 de maio.
Bolsonaro cumprimenta apoiadores que protestam em Brasília contra o Congresso e o STF, em 17 de maio.Adriano Machado (REUTERS)
Juan Arias

As elites econômicas e os mais pobres não costumam ter ideologia. As primeiras têm somente interesses, e os segundos, fome e desconfiança em todos os poderes. A diferença é que os mais pobres têm a riqueza e o desperdício diante dos olhos, enquanto os satisfeitos colocaram um véu sobre esse mundo da miséria para não vê-la. Eles o anulam dentro de si mesmos para não ter de ouvir seus gritos de raiva e se manchar com suas lágrimas.

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Por isso, nem as elites da ganância nem os pobres de tudo costumam ter ideologia. Os poderosos porque estão bem com qualquer política que lhes permita manter seus privilégios. Os pobres porque a única coisa importante para eles é sobreviver. Qualquer Governo, de qualquer cor, será bem visto por eles se lhes fizer chegar as sobras da opulência e do desperdício. Ou será que conheciam a ideologia de Lula e hoje conhecem a de Bolsonaro? Basta-lhes a dor de cada dia.

Assim, os vários populismos de direita e de esquerda estão interessados em que a pobreza não acabe para poder oferecer, em troca de votos, os restos do banquete. Assim os mais necessitados não mostrarão as garras nem terão vontade ou tempo de se rebelar.

Por que acreditam que hoje, diante da pandemia, as classes altas têm mais medo do que as necessitadas, embora sejam estas as que mais morrem? Porque a vida para os mais pobres conta pouco. Estão acostumados a ser sempre os mais sacrificados e esquecidos à própria sorte. Existe um ditado que me espantou quando cheguei ao Brasil, que ouvi de um trabalhador pobre e semianalfabeto: “Pobre tem que morrer”.

Esses pobres estão anestesiados por tanta violência e discriminação acumulada ao longo da vida. Os ricos e os mercados estão interessados nas massas apenas como consumidoras. É por isso que os Governos mais populistas preferem lhes dar eletrodomésticos em vez de cultura e educação. Os supermercados os anestesiam.

Às vezes nos queixamos de que os pobres são passivos, que não se rebelam contra a injustiça. Sem dúvida, se aqueles que vivem apinhados nos guetos das grandes cidades, esmagados entre a violência do tráfico e do Estado, decidissem descer à planície, à cidade da riqueza e das casas blindadas, fariam tremer o sistema. Mas estão ocupados demais em poder colocar comida nos pratos de seus filhos todos os dias.

Do tempo dos romanos até hoje os pobres são acusados de se contentar com “pão e circo”. Será que o Estado de bem-estar social lhes oferece algo mais? Garante-lhes, pelo menos, conforme exige a Constituição, trabalho, habitação, saúde e educação de qualidade?

Assim, ocupados como estão com a sobrevivência, muitos não têm tempo nem forças para as batalhas políticas e sociais. O que a liberdade ou a democracia significa para eles? O que mais entendem é sobre escravidão. E o capitalismo cada vez mais feroz que domina nossa sociedade os entretém e os compra.

Passam os séculos, a tecnologia avança e o homem começa a conquistar o cosmos, mas os pobres continuam sendo o alvo do atraso e da violência. Todo o resto: ideologia, democracia ou ditadura escorrega sobre seus ombros curvados pela ignomínia das escravidões e por tantas violências acumuladas.

Como escreveu com lucidez há poucos dias Carla Jiménez, responsável por esta edição brasileira do EL PAÍS, em uma doída análise da situação atual, para muitos dos milhões à margem da sociedade a diferença entre ideologias opostas é apenas “um risco de giz no chão que se apaga a cada invasão policial injustificada, ou nos soterramentos de barracos improvisados”.

Para os mais pobres, Bolsonaro ou Lula podem ser igualmente os novos deuses daqueles que esperam alívio ao seu inferno ou dois políticos corruptos como todos. Sabemos que não é verdade, mas para quem tem fome e sofre violência e desprezo há séculos, nossas categorias políticas não servem. Eles vivem mais olhando para o chão do que para as estrelas, com medo de perder as sobras que lhes jogam do alto do poder.

Que não se esqueçam disso os políticos, que nas horas dramáticas como as que o Brasil vive tentem mais uma vez envenená-los com falsas promessas, porque os pobres têm boa memória e saberão, na hora certa, unir suas forças, suas frustrações e injustiças atávicas e fazer ouvir sua voz. E poderiam fazer tremer nossa frágil segurança burguesa bordada sobre os escombros de uma civilização cada vez mais cruel que dá as costas à tragédia vivida por todos os discriminados. Eles são tristemente a grande maioria deste país rico e criativo que deveria ser de todos e que um punhado de poderosos sequestrou e colocou de tapete a seus pés.

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