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Opinião
Texto em que o autor defende ideias e chega a conclusões basadas na sua interpretação dos fatos e dados ao seu dispor

Pauta anticorrupção, decisiva nas últimas eleições, parece ter sido esquecida

Tentativas de interferência na Receita Federal e nomeações políticas na Polícia Federal são alguns dos tantos retrocessos que o Brasil vive

Jerusa Viecili
Bolsonaro com o recém-nomeado chefe da Polícia Federal, Rolando Alexandre de Souza.
Bolsonaro com o recém-nomeado chefe da Polícia Federal, Rolando Alexandre de Souza.Isac Nobrega/Palacio Planalto/dp / DPA (Europa Press)

Um estudo publicado pela Fundação Getúlio Vargas, no ano de 2011, concluiu que a eficácia do sistema judicial no combate à corrupção no Brasil é “desprezível”, pois “a chance de um servidor público corrupto ser criminalmente processado é muito menor que 34,01%, (...) além disso, a chance de ser efetivamente condenado criminalmente é de meros 3,17%”. Como consequência da pequena eficácia do sistema de persecução criminal, especialmente em se tratando de delitos de corrupção, redunda a impunidade.

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Em 2017, pela primeira vez em 22 anos de pesquisas do Latinobarómetro, a corrupção foi reputada como a principal preocupação de um país da América Latina, no caso, do Brasil, onde 31% da população considerou a corrupção como o principal problema nacional.

A percepção popular de corrupção generalizada, associada à sensação de impunidade com relação aos crimes de colarinho branco conduz inafastavelmente à formação de um ciclo que se autoimpulsiona, já que o sentimento de quase certeza da impunidade eleva os níveis de corrupção e a inexistência de punição adequada para os crimes de corrupção gera impunidade.

Nesse contexto, o desenvolvimento, os efeitos e a continuidade da denominada Operação Lava Jato, por mais de cinco anos, além de inéditos, são considerados “pontos fora da curva”, exatamente porque nenhum outro caso de investigação criminal, no Brasil, acompanhou a mesma trajetória. O êxito, ainda que parcial e isolado, atingido pela Lava Jato somente pode ser explicado a partir da soma de inúmeros fatores improváveis, aliados à independência conquistada pelos órgãos de persecução criminal, especialmente a partir do ano de 2004, e à existência de um ambiente democrático, com respeito às liberdades individuais, com instituições funcionando de forma legítima e regular e com uma imprensa livre para investigar e noticiar à sociedade os fatos apurados.

A consolidação do estado democrático de direito instituído em 1988 e gradualmente fortalecido ao longo de mais de 30 anos, conjugado a diversos outros fatores de ordem social, proporcionou um amadurecimento institucional que possibilitou o desenvolvimento de um trabalho harmônico de um conjunto de instituições de fiscalização e controle no combate à corrupção. Ao lado disso, a independência do Ministério Público, garantida não apenas formalmente, mas em fatos concretos, como a escolha do procurador-geral a partir de lista tríplice elaborada pelo próprio Ministério Público e a autonomia orçamentária do órgão, bem como a independência de atuação limitada apenas pela Constituição e pelas leis, constituíram parte do conjunto democrático que impulsionou o combate à corrupção no Brasil e permitiu o desenvolvimento da operação Lava Jato.

Isso foi viabilizado, ainda, por diversas criações e alterações legislativas supervenientes à Constituição Federal de 1988, como a Lei de Improbidade Administrativa (1992), a Lei de Acesso à Informação (2011), a Lei das Organizações Criminosas (2013), a Lei Anticorrupção (2013) e a alteração da Lei de Lavagem de Dinheiro em 2012, que permitiram, com respeito aos princípios constitucionais da ampla defesa e do contraditório, uma atuação mais efetiva, célere e concreta na luta contra a corrupção e a impunidade.

Em março de 2018, por ocasião do aniversário de 4 anos da Operação Lava Jato, comentei com um jornalista que o grande legado da operação seria se, no futuro, quando olhássemos em retrospectiva para o trabalho de combate à corrupção no Brasil, a Lava Jato não fosse vista como uma simples saída dos trilhos, ou seja, do caminho de corrupção e impunidade que por décadas o Brasil percorreu, mas fosse vista como o início de um novo caminho a ser percorrido, com punição efetiva aos crimes de colarinho branco.

Pouco mais de dois anos depois, já ficou claro que o trilho normal continua sendo o da impunidade, que retroalimenta a corrupção. O ano de 2019, apesar das promessas de fortalecimento do sistema de combate à corrupção no Brasil, foi marcado por inúmeros e importantes retrocessos, que continuaram e ainda continuam em 2020.

Em 2019, conforme o Índice de Percepção da Corrupção publicado pela Transparência Internacional, o Brasil manteve-se no pior patamar da série histórica do Índice, com apenas 35 pontos, caindo mais uma posição em comparação ao ano anterior e ocupando a 106ª colocação entre 180 países avaliados. Foi o pior resultado apresentado pelo Brasil desde 2012, quando os dados passaram a ser comparáveis ano a ano.

Entre os principais percalços enfrentados pelo sistema de combate à corrupção, no âmbito judiciário, uma decisão do presidente do Supremo Tribunal Federal (Recurso Extraordinário 1.055.941) praticamente paralisou, por aproximadamente seis meses, o sistema de combate à lavagem de dinheiro no Brasil, ao suspender, a partir de um caso concreto, a pedido da defesa do senador Flávio Bolsonaro, todas as investigações criminais que fizessem uso, sem autorização judicial, de dados do COAF e da Receita Federal.

O próprio COAF, inicialmente vinculado ao Ministério da Justiça como parte de uma estratégia de fortalecer seu apoio em investigações de lavagem de dinheiro, foi extinto, rebatizado para Unidade de Inteligência Financeira e transferido para o Banco Central, em agosto de 2019.

Em sede legislativa, a aprovação da Lei de Abuso de Autoridade, que entrou em vigor em janeiro de 2020, foi considerada, inclusive pela Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), um enorme retrocesso, na medida em que freia o poder investigatório e a capacidade de penalizar criminosos, ao mesmo tempo em que inibe o investigador e intimida as instituições responsáveis pela persecução criminal.

Em termos de transparência, imprescindível para permitir o controle social dos gastos públicos, também houve retrocessos significativos, a exemplo da reforma eleitoral realizada em 2019, que criou mecanismos que enfraqueceram ainda mais a transparência de partidos e o controle do gasto público em campanhas eleitorais; e da recente Medida Provisória nº 928/2020, que suspendeu os prazos de respostas e impediu a possibilidade de recursos em pedidos feitos via Lei de Acesso à Informação (LAI).

A nomeação de um Procurador-Geral da República fora da lista tríplice do Ministério Público Federal e declaradamente “alinhado ao atual governo”, ao lado de tentativas de interferência a Receita Federal e nomeações políticas na Polícia Federal foram outros fatores de significativo recrudescimento do trabalho técnico e imparcial realizado pelas instituições encarregadas do combate à corrupção.

Afora isso, o tão esperado Pacote Anticrime, após tantas modificações legislativas e poucos vetos presidenciais, resultou em uma legislação repleta de recortes, alterações que ignoram a realidade fática e pouquíssimas mudanças concretas no arcabouço legal que favorece o combate à corrupção e à impunidade.

Fato é que a pauta anticorrupção foi decisiva nas últimas eleições e, passado o pleito, parece ter sido esquecida, tanto pelos eleitos quanto pelos eleitores, que seguem, em plena pandemia mundial, assistindo compras de respiradores superfaturados, troca de cargos por apoio político e maiores dificuldades no controle social dos gastos públicos.

Enfim, promessas ao vento e nenhum avanço significativo, mas muitos passos atrás. Assim caminha o combate à corrupção no Brasil.

Jerusa Viecili é procuradora da República e integrou a força tarefa da Lava Jato



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