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Pandemia de coronavírus
Tribuna
São da responsabilidade do editor e transmitem a visão do diário sobre assuntos atuais – tanto nacionais como internacionais

Em tempos de coronavírus, indígenas fazem acampamento virtual

Em quarentena pelo avanço da covid-19, lideranças indígenas canalizam para as redes mobilização de pautas essenciais para os povos tradicionais do Brasil

Indígenas no Acampamento Terra Livre, em Brasília, no ano passado.
Indígenas no Acampamento Terra Livre, em Brasília, no ano passado.Joédson Alves (EFE)

O estado de emergência causado pelo novo coronavírus impediu a realização presencial do Acampamento Terra Livre (ATL), evento que reúne todos os anos, em abril, milhares de indígenas de diversas etnias em Brasília para discutir e apresentar soluções para a defesa de seus territórios e direitos.

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FILE PHOTO: Yanomami Indians perform a dance at the community of Irotatheri, during a government trip for journalists, in the southern Amazonas state of Venezuela, just 19km (12 miles) from Brazil's border, September 7, 2012. REUTERS/Carlos Garcia Rawlins/File Photo
O Brasil não pode abandonar povos indígenas durante a pandemia

O ATL, contudo, está acontecendo, mas virtualmente, com uma série de discussões, transmissões ao vivo e apresentações culturais orientadas a estimular a mobilização indígena e denunciar o cenário de omissão do Estado brasileiro quanto a esses povos. Para tanto, é imprescindível mostrar que o atual governo vem seguindo à risca a inconstitucional promessa de não demarcar os territórios, agravando conflitos, violências e a vulnerabilidade social de diversos grupos.

É importante pontuar que a inferiorização do indígena, promovida em discursos do presidente da República, tem repercussão direta nas práticas governamentais. Exemplo disso é que durante a gestão do ex-ministro Sérgio Moro, o Ministério da Justiça deixou de analisar todos os processos demarcatórios que estavam sob sua responsabilidade, devolvendo-os à Fundação Nacional do Índio (Funai) e atrasando a solução de conflitos antigos.

A autarquia indigenista, por sua vez, recusa-se a adotar políticas públicas em territórios não demarcados, o que provoca uma espécie de círculo vicioso das omissões: o mesmo Estado que se omite no seu dever constitucional de demarcar Terras Indígenas utiliza os efeitos da omissão como argumento para deixar de exercer a política indigenista. Indígenas que estão em territórios não demarcados são tratados como invasores, e, quando vão protestar, são recebidos pela Força Nacional de Segurança Pública, ao passo que os adversários da causa indígena recebem outro tipo de tratamento.

O discurso integracionista e de ódio do Governo federal repercute, também, no assédio aos recursos naturais dos territórios, pois há uma sinalização favorável e até um estímulo à violação dos direitos indígenas, constantemente tratados como fraudulentos ou exagerados. A devastação da floresta e os impactos de atividades ilícitas são profundos, o que é favorecido por um projeto eficaz de desestruturação dos órgãos de fiscalização. Em vez de combater a usurpação de terras públicas e garantir a proteção de territórios e unidades de conservação, o Estado brasileiro preferiu editar a Medida Provisória nº 910, que premia a grilagem e convalida ocupações irregulares. Com isso, há uma renúncia à proteção do patrimônio público e o favorecimento a crimes ambientais, sem haver a necessária destinação às finalidades constitucionais de demarcação e reforma agrária.

No cenário de pandemia, tais problemas se agravam. Além da persistência da vulnerabilidade dos territórios, inclusive com o aumento de índices de desmatamento na Amazônia, conforme dados do Sistema Deter-B, do INPE, a disseminação da covid-19 expõe as deficiências do subsistema de saúde indígena, política pública que vinha sendo precarizada por tentativas de privatização e facilitação de evangelização. O risco de colapso causado pelo vírus realça as dificuldades de articulação entre a esfera federal e os Municípios e Estados na saúde indígena, e as carências de profissionais e materiais são imediatamente sentidas.

Não bastassem essas dificuldades, o Governo não adota medidas diferenciadas para o recebimento do auxílio emergencial. A recusa de diálogo com organizações e movimentos sociais na discussão quanto à implementação do benefício e quanto à adoção de mecanismos para garantir a não aglomeração nas cidades para o seu recebimento geram o risco de contaminação em massa. As formas como os indígenas se organizam para ir às cidades, geralmente em grupos, e as dificuldades na permanência nos municípios acendem o alerta para o risco de aumento exponencial de casos nessas regiões.

Canal de pressão

Assim, o vírus se impõe sobre uma realidade em que os reais invasores continuam nos territórios, as políticas públicas não funcionam adequadamente e o Governo Federal ainda pensa que os indígenas precisam tornar-se “seres humanos iguais a nós”. Soma-se que a crise da democracia no Brasil bloqueia canais de participação e de escuta dos grupos, dificultando ainda mais a construção de soluções.

Diante disso, considerando o fato de que a covid-19 provoca efeitos desiguais sobre os povos indígenas e o dever do Estado de prevenir o genocídio, torna-se fundamental que os indígenas possam, com o apoio da sociedade civil, efetivamente mostrar os seus anseios e apontar os caminhos e as demandas para o enfrentamento dessa realidade, o que passa pela proteção dos territórios e pelo respeito à sua identidade.

Finalmente é preciso reafirmar que as atrocidades contra os indígenas não ficaram no passado. Ele se perpetua em diversos cantos do país, onde os “parentes” são assassinados em razão da sua etnia e de seus modos de vida. Na pandemia, os problemas se multiplicam, e a histórica omissão do Estado e o racismo estrutural provocam repercussões desiguais e desproporcionais.

É por isso que o ATL se torna ainda mais importante. Ainda que não haja a presença física nem as manifestações de rua em Brasília, devemos refletir e lutar pela causa indígena e pela democracia.

Julio José Araujo Junior é procurador da República e Mestre em Direito Público pela UERJ. Autor de Direitos territoriais indígenas: uma interpretação intercultural.

Marivelton Baré é presidente da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (FOIRN).

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