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Pandemia de coronavírus
Tribuna
São da responsabilidade do editor e transmitem a visão do diário sobre assuntos atuais – tanto nacionais como internacionais

Encaremos as valas comuns de frente para resgatar os elos que a nossa história nos negou

Admitir nossa indiferença e nosso desamor pode nos salvar para reconstruir pontos de diálogo e de solidariedade em busca de uma sociedade mais humana

Foto aérea de um enterro no cemitério Nossa Senhora Aparecida, em Manaus, de vítimas suspeitas e confirmadas da covid-19.
Foto aérea de um enterro no cemitério Nossa Senhora Aparecida, em Manaus, de vítimas suspeitas e confirmadas da covid-19.MICHAEL DANTAS (AFP)
Flavio Comim
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Vidas secas. Vidas severinas. Vidas com as quais a sociedade não se importa. Vidas que nem vidas são, pois representam para muitos, meras estatísticas: estatísticas de nascimento, de mortalidade infantil, número de analfabetos, de evasão escolar, estatísticas da violência, de desempregados, estatísticas de mortos pelo covid-19. E vidas que nem estatística chegam a ser: vidas ‘subnotificadas’. Vidas que morrem em suas casas sem assistência hospitalar. Vidas que terminam muitas em ‘valas comuns’.

As ‘valas comuns’ fazem parte de nossa história: da colonização dos indígenas, passando pela escravização dos africanos até chegar à marginalização da população pobre. As ‘valas comuns’ são o resultado não dessa pandemia, mas de um país que sempre foi regido pela ‘mística da Ordem e Progresso como patronato político’, como disse Gilberto Freyre, em detrimento dos excluídos e invisíveis. As ‘valas comuns’ são o lugar reservado (“de bom tamanho, nem largo nem fundo, uma cova grande para teu pouco defunto”, como diria João Cabral de Melo Neto) para aqueles 50% que têm apenas 12% da renda nacional e quase nada da riqueza do país; o lugar para alguns daqueles 35 milhões sem água tratada ou daqueles 100 milhões sem esgoto. As ‘valas comuns’ são para aquelas pessoas das bolsas e das cotas que incomodam as classes médias. E também para aquelas que nem bolsas e cotas têm.

Agora é Manaus ou Vila Formosa, na zona leste de São Paulo. Mas o Brasil é grande. Amanhã essas valas poderão ser ocupadas por qualquer um que faça parte daquele grupo de 22 milhões de pessoas vivendo com doenças crônicas e em locais com falta de infraestrutura. Ou por aqueles, que pela cor da sua pele têm uma probabilidade superior a 10 pontos percentuais de estar lá em comparação aos demais. Outros países também têm ‘valas comuns’. Evidências vindas de cidades como Nova York, Paris ou Barcelona, mostram que há um gradiente de desigualdade significativo dessa pandemia em todo o mundo. Mas no Brasil é pior.

É pior porque somos uma sociedade que não é apenas desigual, mas hierarquicamente desigual. É pior também porque há um movimento negacionista, não visto igual em nenhum outro país, de descaso à pandemia e alienação à dor dos que sofrem e dos que estão nas ‘valas comuns’, que é insólito e desconcertante. A julgar pela pesquisa recente do Instituto Ipsos na qual 54% dos brasileiros não acredita na eficácia do isolamento social, nosso negacionismo é mais extenso do que o noticiado. O Brasil é ainda pior que outros países porque temos uma liderança política totalmente cega ― à la Saramago. É pior também porque a falta de espírito público, a ausência de um mínimo verniz de cidadania é parte de quem somos como sociedade. Se “o brasileiro é o outro”, como diria Eduardo Giannetti, quem se importa se o outro tem que sair para trabalhar enquanto eu fico confortavelmente em casa?

Os que agora estão nas ‘valas comuns’ representam não somente o caráter mais profundo da nossa incompetência e ineficiência administrativa como sociedade, do subfinanciamento dos serviços públicos e do nosso subdesenvolvimentismo de alma. Os que agora estão nas ‘valas comuns’ ―e os que ainda irão para lá― são o registro também do nosso desamor, da nossa indiferença, da nossa ‘aporofobia’ (como diria a filósofa espanhola Adela Cortina sobre a ‘rejeição aos pobres’) e de uma organização social longe de primar pelo interesse público.

A única esperança que nos resta agora é a dor causada pelas ‘valas comuns’. Fechar os olhos, mudar as notícias para que sejam ‘mais positivas’, ‘trocar de canal’ para negar a realidade é o pior que podemos fazer nesse momento. Temos que encarar as ‘valas comuns’ de frente, pois somente com esse exercício humanitário podemos reconstruir elos que a nossa história negou: elos de reconhecimento, de amor, de cidadania, de direitos, de solidariedade e de humanidade; elos que nos unem a um destino comum como sociedade; elos de diálogo. Nosso desafio como sociedade é abrir mais vidas comuns ao invés de valas comuns.

Flavio Comim é doutor em Economia. Um dos focos do seu trabalho é Economia da Pobreza. Twitter: @FComim (Universitat Ramon Llull e Universidade de Cambridge)

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