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Pandemia de coronavírus
Tribuna
São da responsabilidade do editor e transmitem a visão do diário sobre assuntos atuais – tanto nacionais como internacionais

Para lidar com a China, tirem as crianças da sala

Provocação de Weintraub veio quatro dias após Ministério da Economia ter apelado à China para liberar a venda de insumos farmacêuticos em nome da “crescente amizade” entre os dois países

Sergio Leo
13 11 2019. Brasilia. O presidente Jair Bolsonaro recebe Xi Jinping, no Palácio do Itamaraty, em Brasília.  POOL
13 11 2019. Brasilia. O presidente Jair Bolsonaro recebe Xi Jinping, no Palácio do Itamaraty, em Brasília. POOL

Incapaz de acordo com a gramática, com seus folclóricos erros de ortografia e sintaxe nas redes sociais, o ministro da Educação do Brasil resolveu dar lições aos estrangeiros: ensinou como a política externa brasileira pode se tornar incoerente e errática nas mãos de uma autoridade. Em outubro de 2019, comemorando a assinatura de uma “parceria científica inédita com a China”, Abraham Weintraub garantiu: “O objetivo é firmar uma série de parcerias com a China, que hoje é a locomotiva de crescimento do mundo”.

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O elogio aos chineses, saído da mais alta autoridade federal na Educação, não resistiu um semestre. A cooperação sino-brasileira, por meio da Capes, deveria “trazer ao Brasil mais recursos, mais oportunidades e mais áreas de pesquisa para os estudantes terem um futuro melhor”, discursou Weintraub, que, logo em abril, trocou a amabilidade por manifestações nas redes sociais, na linha das teorias conspiratórias que acusam a China de ter interesse em espalhar o Covid-19. Acusação parecida fez o filho do presidente da República, Eduardo Bolsonaro. A diplomacia chinesa reagiu, como nunca.

“Irresponsável” “Influência nociva”. “Ingênuo e ignorante”. “Insulto maléfico”. “Declarações absurdas e desprezíveis que têm cunho fortemente racista e objetivos indizíveis”. Essas foram algumas das respostas chinesas aos ataques de Bolsonaro filho e Weintraub. Jamais se ouviu algo parecido dos diplomatas da China no Brasil, tradicionalmente discretos e conciliadores. Claro sinal vindo de Pequim, a resposta dura dos chineses para a antidiplomacia do entorno de Jair Bolsonaro é um teste para o Brasil.

Ter autoridades próximas ao presidente da República fazendo provocações dignas de palpiteiros de botequim irritou quem tem negócios e acordos a zelar com os chineses; e hoje ocupa um tempo precioso na conversa com parceiros asiáticos. O próprio vice-presidente, Hamilton Mourão, e a ministra da Agricultura, Teresa Cristina, tiveram de buscar os interlocutores chineses para pedir que não dessem atenção as palavras Eduardo Bolsonaro, aliás, presidente da Comissão de Relações Exteriores da Câmara.

Weintraub, porém, dobrou a aposta, e condicionou um pedido de desculpas à entrega de equipamento médico ao Brasil. Ruído puro: segundo ofício obtido pelo EL PAÍS, o Secretário de Comércio Exterior e Assuntos Internacionais do ministério da Economia, Marcos Troyjo, quatro dias antes, havia pedido ao Ministro de Comércio chinês, Zhong Shan, em nome da “crescente solidariedade e amizade” e da “duradoura parceria” que une os dois países, o “valioso apoio” do Governo chinês para facilitar a liberação de insumos farmacêuticos essenciais contra os efeitos do COVID-19. A implicância infantil do ministro atravessou a correspondência.

Ser passado para trás na fila de compradores de material para enfrentar o COVID-19 é, de fato, um dos —sérios— riscos criados pelas agressões gratuitas ao maior parceiro comercial do país. Boa parte do fornecimento de equipamentos médicos necessários na pandemia tem como origem o parque industrial chinês. Apenas oito fábricas chinesas são certificadas para fornecer respiradores artificiais, em alta demanda mundial, mas com restrições para exportações. Até recentemente, 77 mil desses equipamentos atenderiam a demanda de todo o planeta; hoje, só Nova York precisa de 30 mil deles, calculou o pesquisador Torbjorn Netland em artigo para o Fórum Econômico Mundial.

A Prefeitura de Nova York, aliás, encomendou 15 mil respiradores aos chineses, que também fornecem 43% de todas as importações mundiais de equipamentos hospitalares básicos como máscaras, luvas médicas e protetores de boca e nariz exigidos no tratamento contra o novo coronavírus, segundo o pesquisador Chad Brown, do Peterson Institute.

Machucar, a essa altura, as boas relações com os chineses merece o epíteto de “irresponsável”, aplicado pelos diplomatas asiáticos. Isso consolida uma imagem de interlocutor não confiável entre os chineses, segundo diplomatas brasileiros com experiência na Ásia.

O Brasil atende a cerca de 40% da demanda chinesa por soja, e os produtores rurais brasileiros não acreditam em forte dano às exportações de produtos como carnes e grãos à China, que compra 80% da soja brasileira e é cliente promissor no setor de carnes: de janeiro a março, com a gripe suína que destruiu o plantel chinês, as vendas de carne de porco do Brasil à China cresceram 270%; as de carne bovina, 125% e as de frango, 55%, em relação ao mesmo período de 2018.

Mas, para seguir nesse ritmo, as autoridades brasileiras contam com a boa vontade chinesa no credenciamento de frigoríficos e na solução rápida de eventuais problemas sanitários. A irritação dos chineses acontece também em um momento de negociação para certificar outros produtos agrícolas, como frutas, para venda a um mercado que cresce com voracidade.

Profissionais da área ainda mantêm o otimismo, mas deploram os atritos “desnecessários “O Governo chinês olha bem à frente; não vai mudar de estratégia por declarações do filho do presidente, mas é preciso ver esses atritos no contexto de uma disputa geopolítica”, diz o consultor Pedro Camargo Neto, ex-presidente da Sociedade Rural Brasileira e da associação nacional dos produtores de carne.

Analistas em política externa dos EUA se dividem sobre esse novo ator poderoso, sem afinidade com os princípios liberais e disposto a ter maior influência nos arranjos globais. Alguns defendem atitudes mais duras, de contenção, como na Guerra Fria contra a extinta URSS; outros sugerem acomodar a China como parceiro num arranjo global; e há quem fale em combinar as duas coisas, buscando parceria enquanto os EUA reforçam sua influência na Ásia e no Pacífico.

Exemplo curioso do pragmatismo chinês e seus desafios para a ordem mundial se vê na Hungria de Viktor Orbán, líder de extrema-direita admirado pelos Bolsonaro. Ele aproveitou a pandemia para decretar poderes emergenciais e, com eles, tornou secretas as negociações para uma estrada de ferro financiada pelos chineses, ligando as capitais da Hungria e da Sérvia.

O presidente húngaro usa as benesses do apoio chinês como argumento interno para rechaçar as pressões da União Europeia por maior abertura no regime. E patrocinou um encontro de 16 países Centro e Leste-europeus com a China, para firmar uma parceria “16+1”, arranjo conveniente para reforçar os planos chineses de maior influência na Ásia, Europa e África.

O Brasil, até hoje, tem sido pragmático, reforçando contatos para exportar ao crescente mercado interno da China, e dirigindo o ímpeto investidor chinês para licitações em projetos de infraestrutura, minério e petróleo (os chineses foram os únicos a dar apoio relevante à Petrobras no frustrante leilão de blocos do pré-sal, em novembro do ano passado). O grande teste vem com a adoção da nova tecnologia 5G de Internet, um dos temas prioritários de Donald Trump em sua disputa com a China.

Os Bolsonaro ecoam as acusações de Trump de que a multinacional de origem chinesa Huawei, gigante fornecedor de tecnologia 5G, pode ser um cavalo de Tróia do Governo de Pequim, para espionar a troca de dados mundial. O mundo sabe que está em jogo a hegemonia no campo tecnológico.

Nunca Pequim foi tão sensível à questão da imagem. E, desde Mao, nunca o país teve um líder tão centralizador e tão preocupado com o aspecto ideológico da conquista de hegemonia global como Xi Jinping —um obstinado filho de líder revolucionário exilado nos anos 60, que, só após repetidas tentativas, conseguiu ingressar, muito jovem, no Partido Comunista Chinês.

A ideia de que os chineses fazem do entorno bolsonarista fica clara na bronca do cônsul-geral da China no Rio, Li Yang, em Eduardo Bolsonaro, a quem aconselhou “não criar mais confusões”, e deixar de “ser usado como arma pelos outros”. Não faltaram ameaças veladas nas respostas chinesas.

Lidar com esse novo poder mundial exige inteligência e clareza sobre os interesses nacionais. Os erros podem condenar o Brasil a ser parceiro de terceira classe, sem condições de aproveitar as chances abertas com a ascensão chinesa, ou de acionar a diplomacia para lidar com os possíveis ruídos nesse processo.

Autoridades que gostam de fazer traquinagem em rede social só servem para quebrar a louça. Melhor devolver a voz aos adultos na sala.

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