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Coluna
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O ministro que manipula a Bíblia para criar ódio político

Abraham Weintraub, que parece conhecer a Bíblia, deveria saber que sua citação se refere a um versículo do Antigo Testamento, o do Deus ainda vingativo

O ministro da Educação, Abraham Weintraub, participa do primeiro culto de Santa Ceia de 2020 da Frente Parlamentar Evangélica do Congresso Nacional, em 19 de fevereiro de 2020.
O ministro da Educação, Abraham Weintraub, participa do primeiro culto de Santa Ceia de 2020 da Frente Parlamentar Evangélica do Congresso Nacional, em 19 de fevereiro de 2020.Marcelo Camargo/Agência Brasil
Juan Arias
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Não se trata de um ministro qualquer, mas do ministro da Educação, Abraham Weintraub, que carrega sobre seus ombros a enorme responsabilidade de formar milhões de crianças e jovens para o futuro da nação. O ministro, por ocasião de um encontro em Brasília promovido pela ONG Todos pela Educação, além de fazer ironias sobre o coronavírus, que pode ter infectado a organizadora do evento, Priscila Cruz, uma das figuras mais destacadas do mundo do ensino, ainda se serviu da Bíblia para recordar a ira de Deus.

Tirando do contexto o salmo bíblico “O Senhor fará recair sobre eles sua própria iniquidade, e os destruirá em sua própria malícia; o Senhor nosso Deus os destruirá” (Salmos, 94,23), ele manipulou os livros sagrados para semear ódio político.

O ministro, que parece conhecer a Bíblia, deveria saber que sua citação se refere a um versículo do Antigo Testamento, o do Deus ainda vingativo, que proclamava a destruição do inimigo, e que não é possível lê-lo hoje sem levar em conta o Novo Testamento, que é o ponto culminante do Velho, no qual a Humanidade dá o salto quântico do "olho por olho, dente por dente" para o da misericórdia, do perdão aos inimigos e do amor universal. Qualquer outro uso político das Sagradas Escrituras, e mais ainda em um Estado laico, é ferir a democracia e buscar semear a cizânia para manter os brasileiros divididos.

Se a religião, seja ela qual for, não servir para defender os princípios da liberdade e defesa dos marginalizados e não contribuir para manter vivos os valores da civilização, conquistados com tanta dor ao longo dos séculos, servirá apenas como instrumento de dominação e divisão. A essência de qualquer contato com a divindade ou é libertadora ou conduz à alienação que profana a Humanidade.

Enquanto em Brasília o ministro da Educação caía na pequenez de querer ofender uma militante que talvez não comungue de seus princípios políticos, chegando a invocar contra ela a ira e o castigo de Deus, no Rio, um programa da TV Globo sobre a vida dura dos transexuais na prisão despertou a ira dos intransigentes ao lembrar o “olho por olho” à la Weintraub. Foi por ocasião da participação do médico Drauzio Varella, que levou ao programa sua grande experiência profissional de aliviar a dor nas prisões e denunciar os possíveis abusos cometidos com os presos.

Se em um primeiro momento o relato do médico sobre uma trans, que ele acabara de visitar na prisão, despertou a solidariedade de milhares de brasileiros que ficaram sabendo que a detenta estava ali havia anos sem nunca ter recebido uma visita, e a quem Varella chegou a abraçar para confortá-la na sua solidão, uma tempestade imediatamente caiu sobre ele quando se descobriu algo que ele na ocasião ignorava. A detenta tinha cometido um crime terrível, estuprado e matado uma criança, um pecado pelo qual foi condenada e está pagando na prisão.

O médico quis lembrar que vai às prisões não como juiz ou advogado, mas como médico, para ajudar os presos. E um profissional não pode parar de curar um doente quaisquer que sejam os crimes que possa ter cometido.

E é aqui onde se cruzam as maldições do ministro da Educação contra aqueles que não pensam como ele, para os quais evoca o castigo de Deus, com a indignação contra o doutor Drauzio Varella.

Já que convivemos com um Governo cujo lema é “Deus acima de tudo”, e no qual os ministros evocam o Antigo Testamento para justificar sua semeadura de ódio político contra aqueles que não pensam como eles, também devemos lembrar aqui que os Evangelhos, que também fazem parte da Bíblia cristã, propõem um Deus diametralmente oposto à fúria escatológica dos seguidores do presidente Bolsonaro.

Basta lembrar que as maldições do profeta Jesus, que anunciava um mundo oposto ao antigo, da ira e da vingança, eram só contra a hipocrisia dos fariseus e a opressão dos poderosos, nunca contra os pecadores. Quando abraçava e curava os leprosos não lhes perguntava se antes tinham matado alguém. Sua compaixão diante da dor já revelava o nascimento de uma sociedade baseada na compaixão e no perdão em vez do ódio ou da vingança.

Para os homens que pediram a pena de morte contra a mulher apanhada em adultério, Jesus os provocou dizendo "quem de vocês estiver livre de pecado atire a primeira pedra contra ela". Todos se foram, “a começar pelos mais velhos”, narra o evangelista.

Se Jesus tivesse visitado hoje a trans presa por seu crime, certamente o teria feito não para lembrá-la de seu pecado, pelo qual já está pagando, mas para lembrá-la de que não estava sozinha na vida e que a misericórdia de Deus era maior que a justiça dos homens.

Na parábola do fariseu e o publicano, Jesus tomou a defesa do publicano, que, no último banco do templo, pedia perdão a Deus por seus pecados, e condenou a soberba do fariseu que se vangloriava, proclamando: "Eu não sou um pecador como esse publicano".

Uma das obras de misericórdia do cristianismo é “visitar os prisioneiros”. E esse trabalho de misericórdia não discrimina a culpa maior ou menor dos detidos, pois olha apenas para solidão que eles têm que suportar para expiar seu pecado.

Fui testemunha, como jornalista, da famosa visita do papa João XXIII à prisão de Regina Coeli, em Roma, destinada então a presos condenados à prisão perpétua. Portanto, seus crimes deviam ser gravíssimos. O Papa, misturando-se com os prisioneiros, abraçou-os, abençoou-os e até lhes recordou que alguns deles poderiam estar ali injustamente por algum erro da Justiça. Ele não foi lá para absolvê-los nem voltar a condená-los, já que isso era função da justiça dos homens. Foi confortá-los. Lembro-me de ter visto mais de um dos prisioneiros chorando.

E o papa João Paulo II foi a uma prisão para encontrar Ali Agca, o jovem turco que atirou nele e o colocou à beira da morte. Acabou pedindo às autoridades civis que ele fosse perdoado.

A justiça de Deus nem sempre coincide com a dos homens e ninguém tem o direito, e menos ainda na política, de invocar o nome de Deus para castigar ou pedir os castigos do céu contra ninguém. O resto é profanar os textos sagrados.

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