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Bolsonaro e o Congresso, reinvenção ou morte do presidencialismo de coalizão?

Rodrigo Maia não parece vocacionado a articular um golpe parlamentar. Mas, como diz o chavão, na política não há vazio de poder

O presidente do Senado, Davi Alcolumbre, cumprimenta Rodrigo Maia, presidente da Câmara.
O presidente do Senado, Davi Alcolumbre, cumprimenta Rodrigo Maia, presidente da Câmara.ADRIANO MACHADO (Reuters)
Leonardo Martins Barbosa João Feres Júnior Fernando Meireles

O ano de 2020 se inicia como terminou 2019: marcado por episódios de conflito entre o presidente Jair Bolsonaro e o Congresso. Desta vez, a razão da disputa gira em torno do controle de fatia bilionária do orçamento. A regulação do orçamento positivo, tal como aprovada pelos parlamentares na Lei de Diretrizes Orçamentárias e vetada por Bolsonaro, reservava ao relator do projeto o controle sobre 30 bilhões do orçamento do Governo federal. Em reação, Bolsonaro chegou ao ponto de convocar suas bases para uma manifestação que, dentre outras pautas, promete hostilizar abertamente o Congresso. O episódio é mais um exemplo da relação descompassada entre os dois poderes, para dizer o mínimo.

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Bolsonaro de fato se negou a compor uma coalizão parlamentar de apoio ao seu Governo e, ironicamente para quem acusava o presidencialismo de coalizão de troca-troca imoral de favores, conduz as relações com o Parlamento da maneira mais obscura possível. Não é necessário doutorado em teoria da ação coletiva para saber que a agregação de preferências diminui o custo transacional, ou, em outras palavras, sem partidos fortes e aglutinados, a negociação com o parlamento fica muito mais complexa e cara. Mas Bolsonaro e sua turma não são conhecidos por dar importância à ciência, ainda mais à ciência da política —atividade que o “olavismo” associa ao comunismo.

Nesse contexto, é à primeira vista surpreendente o estudo elaborado pelo Observatório do Legislativo Brasileiro (OLB), que identifica como característica marcante desse primeiro ano de mandato uma alta taxa de governismo no Congresso. Aplicando um método consolidado na ciência política para analisar clivagens parlamentares, a equipe do OLB não apenas averiguou que o apoio ou oposição ao governo foi o motivo central de conflito entre os congressistas, como também que uma maioria substantiva havia apoiado consistentemente as propostas legislativas do Planalto em 2019. Em uma escala de 0 a 10, em que 10 representa o máximo de apoio ao governo e 0 oposição total cerrada, nada menos do que 74,4% dos deputados e deputadas apresentaram notas maiores que 7. No Senado, praticamente 50% dos titulares registraram notas 9 ou 10.

Como explicar essa aparente contradição entre a alta taxa de governismo parlamentar e um cenário de hostilidade entre os dois poderes?

O estudo contém pista importante para a resposta. Verificamos também que os deputados se distribuem em três grandes grupos na Câmara (que se diferencia assim do Senado, onde apenas dois grandes grupos foram encontrados). O primeiro é formado por representantes que demonstraram apoio sólido ao governo, principalmente aqueles filiados ao Novo e ao PSL (a análise ainda não mediu os efeitos da tardia cisão no PSL). O segundo grupo é o de oposição, em que se encontram parlamentares do PT, PSOL, REDE, PCdoB e, em menor medida, PSB e PDT. O terceiro e maior grupo é constituído pela massa de partidos de centro-direita, tais como PSDB, PMDB, PP, DEM e tantos outros do denominado “centrão”. O grupo, em razão de seu tamanho, foi o principal responsável pelo relativo êxito legislativo alcançado até aqui das propostas do executivo. Contudo, embora governista, ele não apresenta uma taxa tão alta quanto à do primeiro grupo, demonstrando, assim, autonomia no trato com o Planalto.

Os dois projetos que até agora foram os mais simbólicos da agenda do novo governo, a reforma da previdência e o pacote anticrime, servem de exemplo para avaliarmos o comportamento desse terceiro grupo. Os projetos são oriundos dos dois mais poderosos ministros do Planalto, Paulo Guedes, a frente do Ministério da Economia, e Sergio Moro, Ministro da Justiça e Segurança Pública. Na reforma da previdência, houve certa convergência entre as principais lideranças do Congresso e o governo. De fato, a aprovação de reforma dessa envergadura deveu-se em grande parte ao protagonismo exercido pelo presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM-RJ), que articulou maioria sólida a seu favor. A atuação de Maia, entretanto, modificou o projeto em pontos importantes, limitando, por exemplo, as mudanças na previdência rural e reduzindo o tempo mínimo de contribuição originalmente proposto no projeto.

No pacote anticrime patrocinado por Moro, a interferência parlamentar foi ainda maior. Não foram aceitas, por exemplo, alterações nas regras do denominado excludente de ilicitude, a prisão após condenação em segunda instância e a criação do modelo de “plea bargain”.

Um terceiro exemplo de relativa autonomia parlamentar é o decreto de regulamentação do porte de armas editado pelo presidente Bolsonaro no começo de seu mandato. Ele foi revogado pelo próprio executivo, após o Congresso ameaçar fazê-lo por meio de decreto legislativo (aqui vale a leitura da análise da política dos decretos, também do OLB).

Desde o impeachment o Congresso tem se mostrado disposto a alterar a balança de poder do sistema político, movimento que se repetiu na disputa em torno à regulação do orçamento impositivo. O poder de iniciativa e autonomia sobre a execução do orçamento constituíram nas últimas décadas peça chave de um modelo centrado no executivo, que agora é questionado por lideranças parlamentares. Se em 2019 foi conveniente Maia e o Centrão que ele comanda uma atitude governista, nada garante que este ano e nos dois anos que resta a esse governo tal tendência vá se repetir.

Enquanto isso, Bolsonaro insiste em governar sem coalizão e praticamente sem partido. Junte-se a isso o fracasso das promessas de crescimento econômico e o torvelinho de absurdidades produzido diariamente pelo presidente e sua entourage, sempre dispostos a ofender gregos e troianos. A revolta do General Heleno e de Bolsonaro, e a chamada para a passeata do dia 15 de março, parecem sinais de um executivo que se enfraquece diariamente, frente a um Congresso que consegue se manter coeso e partidariamente disciplinado, a despeito de sua péssima reputação popular.

Rodrigo Maia não parece vocacionado a articular um golpe parlamentar. Mas, como diz o chavão, na política não há vazio de poder, e o comportamento do presidente está empurrando o Congresso e vários atores políticos a sonharem com o parlamentarismo como solução para uma crise profunda de governabilidade que criou. É bastante irônico ver um entusiasta do autoritarismo causar, por falta de virtude política, tamanha corrosão no poder do líder máximo da nação, o Presidente da República —cargo que acidentalmente ocupa.


Leonardo Martins Barbosa é pesquisador do Observartório do Legislativo Brasileiro, doutor em Ciência Política pelo IESP-UERJ e pesquisador sênior do NECON. Estuda partidos políticos e o sistema partidário brasileiro, com ênfase na inserção do PT no sistema político nacional. Tem graduação e mestrado em História.

João Feres Júnior é coordenador do Observartório do Legislativo Brasileiro e professor associado de Ciência Politica do IESP-UERJ e coordenador do Laboratório de Estudos de Mídia e Esfera Pública (LEMEP).

Fernando Meireles é doutor em Ciência Política pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e Pós-Doutorando no IESP-UERJ. É pesquisador do Centro de Estudos Legislativos (CEL/UFMG) e foi pesquisador visitante no Departamento de Ciência Política da University of Essex

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